Download this publication

How to cite this publication:

Margareth Nangacovie, Iselin Åsedotter Strønen (2019). Género e pobreza no periurbano Luandense. Bergen: Chr. Michelsen Institute (CMI Report R 2019:05)

A pobreza das mulheres é um tópico relevante para a compreensão das condições materiais da população e a sua relação com o género. Esta categoria de análise permite perceber as particularidades e especificidades das dinâmicas sociais e económicas,  entre mulher e homem.

Essa busca não pode ser feita de forma desligada do espaço, em que se encontram esses sujeitos. A determinação do lugar físico e do lugar simbólico ajudam, também, a ver e compreender como as diferentes interações e interveções influenciam a vida e o futuro das mulheres e dos homens, de forma distinta. Por isso, a construção social, política, económica e até cultural não é nem neutra, nem imparcial. 

Este estudo é resultado de um conjunto de questionamentos sobre a vida e a condição da mulher na periféria luandandese,  reconhecendo, que a periferia, enquanto  expressão da pobreza da cidade e a falta de dados fiáveis sobre o género, têm sido um forte desafio e condicionamento para o conhecimento da realidade.

Introdução

“É pobre, o chefe de família que não consegue o suficiente para comprar comida que chegue para um mês, e não consiga ter os filhos matriculados na escola”.
Rafael Morais, Wenji Maka II, 2016.

Para muitos académicos, género é uma importante categoria (ou variável) de estudo da vida, da política, da realidade social, da desigualdade, do silêncio sobre os problemas das mulheres, das múltiplas formas de opressão contra as mulheres e das respectivas lutas por melhor cidadania (Maccal, 2010, p. 2). O género tem grande importância dentre as determinantes do desenvolvimento social e comunitário, já que ajuda a compreender a posição que homens e mulheres ocupam nos espaços privado e/ou público. Por isto, tal como outras categorias de análise, o género deve ser abordado em relação constante com outras dimensões sociais e económicas.

Em Angola, as relações de género foram influenciadas pela tradição, colonização, guerra, pobreza, urbanização e globalização. Todos estes factores têm reflexos nas relações familiares, sociais e políticas, e é evidente que a questão do género, como sistema dialéctico, não pode ser abordada apenas em atenção à questão da desigualdade, sem levar em conta o conflito ideológico e cultural entre as novas normas e as regras tradicionais sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, num tempo e espaço determinados. Aliás, a literatura mais recente entende que estes elementos têm um impacto importante na análise do género porque influenciando a sua construção, permitem fazer a sua contextualização e captar as suas particularidades quanto ao lugar do seu desenvolvimento: público, privado (doméstico), laboral e até de lazer (Moreira, 2006, p. 142).

É, pois, o sistema de género, nas suas relações dialécticas, entendido como questão de desigualdade e de conflito ideológico e cultural, entre tradição e modernidade que está no centro deste estudo sobre “Gênero e pobreza no periurbano de Luanda”.

Este estudo, ao fazer a leitura social das relações de género, num espaço e tempo determinados, associada às questões da pobreza e da desigualdade, permitiu, por um lado, conhecer as mudanças na construção de uma sociedade em concreto, mais propriamente, o modo de produção, consumo, distribuição de benefícios e oportunidades e as suas consequências no campo da reprodução, nos musseques de Luanda. Por outro, analisar a relação e a condição da mulher na periferia luandense: o impacto das relações na condição social da mulher, as antigas ocupações e os novos tipos de trabalho da mulher e a gestão do tempo da mulher que deixa de ser de dedicação exclusiva às tarefas domésticas e passa a ser um tempo distribuído por múltiplas tarefas, num período de acentuadas dificuldades financeiras e sociais.

Estas alterações acentuam a descontinuidade das relações no espaço. E o efémero, simultâneo e instantâneo das relações no tempo (Moreira, 2006, p. 142) trazem oportunidades (e novos desafios) para toda a comunidade. No caso particular da mulher, estas transformações têm provocado mudanças no campo da cultura tradicional, introduzindo novas regras de género, permitindo, para uma certa franja delas, explorar e aproveitar oportunidades no sector produtivo, participação masculina nas tarefas domésticas e familiares e o recurso a serviços terciários; como creches e empregadas domésticas. Trazem também o crescimento da consciencialização e participação da mulher em actividades económicas e o aumento da contribuição da mulher na mobilidade social da família.

Não se trata ainda de uma revolução, mas mesmo que assim fosse, seria sempre uma “revolução incompleta”, na medida em que não se verificam substanciais mudanças quanto à presença dos homens no espaço doméstico. Ainda há um longo caminho por fazer, em relação ao reconhecimento social do trabalho feminino, em relação às questões da precaridade do trabalho, especialmente o informal, da segurança social, da subalternidade do trabalho feminino, da violência contra as mulheres no trabalho, inclusive no trabalho informal, onde os casos mais relatados são os de zungueiras e de outras vendedoras informais.

Este estudo sobre “Gênero e pobreza no periurbano de Luanda” integra a componente urbana de um projecto de pesquisa sobre “Pobreza e Desigualdade[1]”, conduzido pelo CEIC-UCAN e pelo Chr. Michelsen Institute (CMI), nas províncias de Luanda e Malange. Esta subcomponente da pesquisa sobre pobreza, no meio urbano, foi realizada em quatro bairros de Luanda: Paraíso, no município de Cacuaco; Wenji Maka II, no município de Belas; Kalawenda, no município do Cazenga e Catambor, no município de Luanda, distrito da Maianga. Foram feitos inquéritos (cerca de 500) ao chefe do agregado familial, entrevistas semiestruturadas, a responsáveis na administração municipal e comunal, líderes políticos, cívicos e religiosos e grupos focais com homens, mulheres e jovens. A aplicação dos inquéritos aos agregados familiares, nos bairros, foi feita através de uma amostra simples e aleatória, sendo estes escolhidos pelo método de bola de neve, com a ajuda das Comissões de Moradores, a partir da indicação alternada de quarteirões e a escolha alternada das ruas e das casas, em cada quarteirão. Feita a escolha, o inquiridor iniciava o seu trabalho e, perante a recusa dos moradores da casa escolhida, passava para a casa imediatamente a seguir.

A nossa intenção não foi a de obter uma amostra representativa, mas exemplificativa, pelo que consideramos a amostra obtida bastante e paradigmática porque nos permitiu captar, conhecer e analisar as questões mais relevantes para o nosso estudo que privilegiou uma leitura qualitativa dos dados primários e dos secundários, obtidos através de uma recolha documental complementar.

Assim, é este trabalho de campo que fundamenta as análises e conclusões deste estudo. Este trabalho de campo e a análise qualitativa dos dados[2] permitiram-nos fazer uma leitura espácio-temporal e interseccional[3] das relações de género e compreender como esta categoria se relaciona com a pobreza, nos espaços da pesquisa e como influencia, elimina, mantém ou reforça os sistemas de poder.

Ilustração 1: Mercado movimentado em Luanda

Foto: Iselin Åsedotter Strønen

O estudo, ao analisar a situação da mulher na periferia luandense, parte de uma realidade de pobreza e desigualdade que é tida como factor mais prejudicial à mulher, de grande violência contra a mulher e busca compreender (a) como vive a mulher nos espaços (da pesquisa) do periurbano luandense; (b) como é a pobreza da mulher nesses espaços; (c) como género e pobreza se relacionam e que factores socioeconómicos interferem nas relações de género; (d) que estruturas interferem na igualdade ou desigualdade entre homem e mulher nas comunidades do periurbano luandense; (e) que factores determinam as diferenças sociais entre mulheres da mesma comunidade; (f) como se manifesta a violência contra a mulher e quais as suas consequências; (g) que sistemas de apoio social existem nas comunidades para a mulher; (h) qual é a participação da mulher na resolução dos seus problemas e, finalmente, se (i) a questão de género é um tópico relevante na agenda do desenvolvimento das comunidades.

Esta análise está repartida por três capítulos: o primeiro é dedicado aos “Espaços da pesquisa” que está, por sua vez, dividido em duas partes: uma que faz uma apresentação monográfica dos bairros de Luanda, onde a equipa de pesquisa trabalhou, outra que estabelece o perfil dos agregados familiares inqueridos. O segundo capítulo trata da relação “Género e Pobreza”, dando uma visão panorâmica da pobreza e, em particular, da pobreza das mulheres, enfatizando o orçamento doméstico e a gestão das necessidades familiares, o emprego e as relações de género nos bairros de Luanda. O terceiro capítulo é sobre a violência contra a mulher nas suas mais variadas formas: violência doméstica, violência sexual, violência no trabalho, nomeadamente violência contra as zungueiras, contra as vendedoras dos mercados contra as empregadas domésticas e finalmente sobre os sinais de como essa violência está a produzir uma resposta que ultrapassa a simples defesa individual dos mais elementares direitos das mulheres e está a produzir um duplo fenómeno de consciencialização e de mobilização cívica das mulheres com forte respaldo na sociedade e opinião pública.

A conclusão vai no sentido de sinalizar, precisamente, o facto de que essa concomitante consciencialização e mobilização cívica das mulheres, quer das mulheres trabalhadoras de baixo escalão social, quer das de elite corresponde a politização (e não necessariamente partidarização) dos problemas das mulheres e da possibilidade de condições da sua emancipação e de uma mudança dos paradigmas de género no país.

1. Espaços da pesquisa e perfil dos agregados

1.1  Os espaços da pesquisas

Neste capítulo vamos, primeiro, fazer uma sucinta (1.1) monografia dos bairros estudados através de uma breve exposição sobre a sua história, situação social, serviços públicos e organização comunitária. Em segundo lugar, vamos descrever (1.2.) o perfil dos agregados familiares inqueridos, iniciando com a questão da liderança, em função do sexo, seguido de outras características como escolaridade, actividade económica, língua, estado civil e religião.

1.2  Os bairros da pesquisa

A geografia urbana de Luanda é notoriamente influenciada por factores históricos, políticos, culturais e económicos, que criam um sistema social marcado por extremos visivelmente impactantes, havendo a riqueza, de um lado, e a pobreza, de outro.

Sendo Luanda socialmente dividida, desde os seus primeiros desenvolvimentos, a periferia da cidade é, há muito, o lugar dos excluídos e da presença da pobreza. Os musseques são zonas ao redor do casco urbano da cidade que crescem sem planificação urbanística e sem ou com reduzida quantidade e qualidade de serviços públicos (Bosslet, 2014, p. 71), por causa do crescimento da população, especulação imobiliária e falta de uma política social e de serviços integradora do Estado. A periferia demonstra o contraste da cidade que apesar de majestosa, também sucumbe na pobreza e na falta de quase tudo. De certa forma, a periferia é a expressão mais visível dos problemas sociais da cidade, com a maior fatia da pobreza da cidade (Tvedten e Lázaro, 2016).

A definição dos espaços (como público ou privado) interfere nas relações entre homens e mulheres. Na periferia não é diferente e constata-se que na periferia escasseia o espaço público e não se atribui a devida relevância a participação pública dos moradores. O predomínio do espaço privado faz com que as relações que se estabelecem e que perduram se mantenham num circulo informal, “pessoal e/ou familiar”, mesmo quando determinadas dimensões desta relação já tenham perdido o carácter privado, em detrimento de outro bem a salvaguardar[4].

O Estado encara a periferia, o musseque ou os assentamentos informais, como os designa o Plano de Desenvolvimento da Província, como uma realidade a considerar através de uma política de reestruturação que implique o investimento do Estado, nesses lugares e o reconhecimento dos direitos (de posse e de propriedade) dos cidadãos sobre os seus espaços[5], mesmo que a realidade seja completamente diferente.

Mapa 1. Locais do projecto, Luanda

De acordo com o censo de 2014, os municípios do Cazenga, Cacuaco, Luanda e Belas estão entre os mais populosos da província, com mais de 1 milhão de habitantes cada um. A excepção do Catambor, os três outros bairros, designadamente Wenji Maka II, Paraíso e Kalawenda faziam parte do que era a cintura verde de Luanda e desenvolveram-se a partir de uma certa pressão socio-urbanística, seja para acomodar novos residentes – deslocados, desmobilizados, refugiados seja para reagir a tentativas de aproveitamento, diante do oportunismo e da necessidade de expansão urbana da cidade. As antigas lavras e hortas deram lugar as novas residências, fazendo surgir e crescer uma outra[6] paisagem social a volta da cidade, também consideradas zonas periurbanas, ou seja, a periferia de Luanda. No início, essa ocupação era feita por habitação precária ou provisória: tendas, casas de papelão, casas de chapa, adobe ou pau-a-pique, que depois passaram para construções blocos de cimento, com carácter definitivo. Os novos muros e paredes produziram um encontro de culturas e de realidades que têm em comum as múltiplas carências e o senso generalizado de pertencer ao grupo dos que mais sofrem.

Os quatro (4) bairros vão ser descritos levando em consideração a história da sua construção, os serviços e equipamentos sociais públicos existentes, a sua situação social e a sua organização comunitária.

1.2.1  Wenji Maka II

Nome em língua Kimbundu que quer dizer “problemas no negócio”. É um bairro localizado na zona sul de Luanda, situado na Comuna do Camama, município de Belas. Wenji Maka terá uma extensão de mais de 260 hectares e cerca de 22 mil habitantes[7]. Segundo a Comissão de Moradores, formou-se em 2003, sendo que, antes era um conjunto de lavras com até dois hectares de dimensão, pertencentes a cerca de 275 pequenos camponeses. Destes, mais de metade eram mulheres. O bairro é maioritariamente habitado por pessoas oriundas do norte do país (bacongos), havendo uma presença notável de congoleses.

A transformação da área em bairro residencial foi motivada por um conflito de terras, em 2003, que opôs, na altura, o cónego Apolónio Graciano e os camponeses. Como forma de evitar que ficassem sem as suas terras, grande parte dos camponeses decidiu, gradualmente, construir e/ou vender partes de terrenos a outros particulares para a construção de habitações.

Serviços sociais públicos

O bairro conta com água canalizada e luz eléctrica instalada, por iniciativa da Comissão de Bairro, apesar de existirem ainda moradores sem água e luz eléctrica domiciliadas[8], uma escola do ensino primário e secundário, uma esquadra de polícia e um centro médico materno-infantil. A administração comunal fica localizada há cerca de cinco (5) quilómetros do bairro.

Situação social

A população é caracterizada como sendo pobre, sendo que mais de metade obtém rendimentos precários, ou seja, insuficientes para um mês de sustento familiar. Em cada 10 agregados, 4 serão liderados por mulheres, sendo 5 (cinco) o número médio de filhos por agregado. As mulheres em geral praticam o pequeno comércio; à porta de casa, na zunga (ambulante) ou em mercados informais. Entre os homens é também comum o pequeno comércio e há os que se dedicam ao serviço de táxi, a pedreira e a serralharia. A gravidez precoce foi referida como sendo uma realidade preocupante.

Ilustração 2: Vendedora de carne do lado de fora de sua casa

Foto: Iselin Åsedotter Strønen

Organização comunitária

O bairro está estruturado em ruas e quarteirões. Cada quarteirão tem um representante na Comissão de Moradores e compreende entre 20 a 30 famílias. Os moradores elegem os seus representantes à Comissão de Moradores. Esta, na sua fundação, contava com 18 membros (sendo 7 mulheres e 11 homens) mas hoje conta apenas com 5 membros (todos homens), pois, não sendo uma actividade remunerada, grande parte dos associados desistiu dela para dedicar-se ao comércio e outras formas de sustento familiar. A comissão representa e encaminha os problemas dos moradores junto dos serviços públicos, como a Administração Comunal e a polícia e trata dos assuntos ligados ao bairro: como a falta de água, de luz, de segurança, violência doméstica; presta serviço de aconselhamento e encaminha os casos à esquadra da polícia. Quanto ao saneamento básico, o lixo é depositado na vala de drenagem junto à estrada principal, outras vezes é enterrado ou queimado no interior das ruas ou casas. A maior parte das residências dispõe de latrinas, não havendo esgotos para a drenagem das águas residuais domiciliares, nem pluviais.

1.2.2  Paraíso

É um dos 15 bairros da Comuna do Kikolo, uma das mais populosas do município de Cacuaco. Está dividido em 11 sectores ou zonas, sendo que cada sector comporta entre 5-8 quarteirões. Localizado à noroeste da Cidade de Luanda, faz fronteira com o município de Viana e estima-se que tenha 5 mil quilómetros quadrados, e entre e 55 - 120 mil habitantes, sendo a sua população maioritariamente de origem umbundu e bacongo[9].

Serviços sociais públicos

O bairro não tem água canalizada, embora exista, há dois anos, um plano de domiciliar a água. Até ao momento, as populações abastecem-se em chafarizes. Quanto a luz, os moradores abastecem-se a partir de um Posto de Transformação (PT) privado[10].

O bairro conta com uma escola pública do ensino primário (até a 6.ª classe) e uma do ensino secundário (até a 9.ª classe). A Igreja Católica tem uma escola do ensino primário e 1.º ciclo do ensino secundário. Existem ainda várias escolas particulares (vulgo colégios) de pequena estrutura, geralmente, do ensino primário. Não tem hospital, apenas centros médicos públicos e alguns privados, todos a funcionar em condições deficitárias.

O bairro tem, desde 2015, uma esquadra policial e mais 3 postos móveis de polícia. Apesar desta presença física, o policiamento é deficitário, especialmente à noite e a criminalidade é alta e os crimes são violentos (homicídios, violações, roubos com agressões físicas).

Ilustração 3: Ruas não pavimentadas

Foto: Iselin Åsedotter Strønen

Situação social

Do ponto de vista económico e social, as famílias são de renda baixa e precária, sendo que a maior parte dos homens tem emprego de segurança privado, com um salário médio de 25 mil kwanzas e as mulheres exercem, principalmente, o comércio informal, à porta de casa, nos mercados (praças) ou ambulante (zungueiras). Os jovens são na maioria desempregados, sendo que alguns praticam a actividade de motoqueiros (táxi com motorizadas) ou taxistas (táxi com viatura). No período chuvoso, as principais vias ficam intransitáveis, impossibilitando que carros ligeiros trafeguem na zona. O terreno arenoso, desordenado e bastante esburacado, tende a isolar partes do bairro.

Organização comunitária

O bairro tem uma “Comissão de Moradores” nomeada que é lidera por um coordenador, auxiliado, em cada sector, por um responsável, denominado vogal. O coordenador responde directamente ao Administrador Comunal do Kikolo do qual depende política e administrativamente.

1.2.3  Kalawenda

A designação do bairro em língua Kimbundu quer dizer “para comer tem de andar”. Este bairro foi erguido numa área de antigas lavras de camponeses que viviam nos arredores de Luanda (comissão do Cazenga e outros bairros). Ai se encontravam bananeiras, imbondeiros, cajueiros, mandioqueiras, etc. Na década de 1990 os camponeses começaram a vender massivamente lotes de terrenos, e assim surgiu o bairro Kalawenda.

Serviços sociais públicos

O Bairro tem uma esquadra policial, água canalizada na maioria das residências, não tem escolas públicas, existe uma escola comparticipada. Falta luz e saneamento básico, o faz com que o lixo seja deixado na rua e, no tempo chuvoso, seja transportado pela corrente. Quanto à saúde, o bairro está próximo do Hospital Municipal do Cazenga.

Situação social

“É difícil viver aqui. Não há luz. Água canalizada foi um sacrifício[11]. Muita delinquência, as 19 horas já não se pode andar. Escolas não existem. Apenas uma comparticipada, até a 6.ª classe, muitos colégios privados. Não temos centros médicos, apenas postos de saúde privados. Existe uma esquadra próximo, mas a actuação da polícia não se faz sentir. Algumas vezes a resposta que se ouve é: “são vossos filhos”, desabafa uma mulher. Os moradores contam ainda que, antes as águas das chuvas escoavam, mas hoje as ruas ficam alagadas”. “Tem muita gente desempregada. Eu mesma há dois anos fui despedida de uma empresa de recolha de lixo”, conta certa moradora. “O meu marido, desde que veio da província não consegue emprego. Assim mesmo está em casa. Os jovens passam o dia no bairro”, refere outra moradora. Quanto ao registo civil, alguns moradores declararam que muita gente não está registada. Muitas crianças não estão na escola. Pais e filhos não têm documentos”. “Eu mesma não tenho os filhos a estudar na escola porque eu não tenho bilhete. Por isso estão na explicação. Não trato porque não tenho dinheiro. Tudo é dinheiro. O registo fica longe”, enfatiza uma mulher. As condições de vida parecem ter piorado, especialmente as de alimentação. “A vida das pessoas está mal. Muitas famílias não estão a fazer as três refeições por dia”, referiu uma moradora. Enquanto conversávamos com um grupo de 4 mulheres sobre a situação do bairro, duas referiram que há 1 dia que estavam sem comer. Outra disse que o marido lhe deu-lhe 50,000.00 AOA[12] (cinquenta mil kwanzas) para as compras do mês e só conseguira comprar arroz, óleo e massa. Imediatamente a conversa é interrompida, ou outra entrevistada, que ao ouvir o relato da vizinha pede um quilo de arroz para cozinhar com peixe seco, que trazia à mão. Falta dinheiro para registar as crianças, dar saúde, comprar roupa já nem se fala. A alternativa é pedir comida a que tem: família ou vizinhos”, rematou a moradora.

Organização comunitária

O bairro esta organizado em ruas, que compõe os quarteirões e estes por sua vez, os sectores que vão todos integrar a comuna. A administração comunal existe e depende da administração municipal. Os moradores fazem as suas reclamações na administração municipal. Há um conflito de jurisdição entre as Administrações da Cacuaco e Cazenga.

1.2.4  Catambor[13]

O bairro do Catambor localiza-se no município de Luanda, o mais populoso do país, distrito urbano da Maianga que tem 2,6 km2 de superfície e uma população estimada em 91.521 habitantes[14]. É um musseque ou um gueto, como lhe chamam as novas gerações, entre os bairros Alvalade, Maianga e Prenda. Tendo sido erguido na parte norte do Morro da Maianga, a sua topografia tem várias zonas com declives e raramente se encontram espaços planos, o que dificulta o acesso ao seu interior. Diz-se que o significado do seu nome é “Pequeno Tambor” que segundo à narrativa dos moradores mais antigos deveu-se ao facto de um comerciante europeu, que se ocupava a fazer tintas, as acondicionar em pequenos tambores. O mais provável, dizem outros, é que o nome foi atribuído pelo facto das primeiras casas do bairro terem sido construídas com chapas de tambores.

Serviços sociais públicos

De acordo com os dados fornecidos pela Administração Distrital da Maianga, o bairro Catambor tem 11 escolas e 1 posto médico públicos. Há também 13 escolas, 6 creches privadas e 1 posto médico privado que ao contrário da unidade médico-sanitária pública, tem serviços de internamento e funciona 24 horas por dia[15].

Situação social

Atendendo ao facto do bairro estar no interior da cidade, perto do centro de Luanda, torna-o bastante cobiçado para projectos imobiliários. Por esta e outras razões têm havido tentativas de realojamento dos seus moradores em outras zonas mais longínquas, distantes dos seus empregos e até mesmo da sua área de relações, com o fito de dar lugar a iniciativas privadas. O discurso da administração municipal é a da necessidade de intensificar o apoio social às famílias, de fazer um maior enquadramento do regime de propriedade urbana e condições do uso da propriedade do solo e de concretizar acções de planeamento e de realização de acessos e requalificação urbana.[16] Ou seja, fazer desaparecer o Catambor que “é um musseque encravado na zona urbana de Luanda (…) para dar lugar a uma moderna área habitacional, que vai proporcionar acomodação condigna aos cidadãos”[17] que possam pagar os preços do mercado de especulação imobiliária, transferindo, os actuais moradores, para zonas mais distantes do centro urbano.

O Catambor, apesar de ser um bairro pobre, pela sua localização junto de serviços públicos de referência e proximidade de áreas de classe média alta, não tem as mesmas características que os outros bairros da pesquisa, quer em termos de isolamento ou mobilidade, quer em renda dos agregados, quer ainda em relação ao acesso aos serviços públicos ou em termos de nível de vida. Deve-se considerar que em termos de renda e acesso aos serviços sociais, o Catambor apresenta melhores indicadores, uma vez que está mais próximo das entidades empregadoras e muito próximo de várias instituições de ensino de todos os níveis (primário, secundário, médio e universitário) e de unidades médico-sanitárias de referência públicas (Hospital do Prenda, Hospital Maria Pia, Hospital Pediátrico e não muito longe da Maternidade Lucrécia Paim) ou privadas (Clínica Girassol, Clínica do Alvalade) para além de demais infraestruturas desportivas.

Ilustração 4: Uma cidade dividida

Foto: Iselin Åsedotter Strønen

O Catambor tem água canalizada em algumas residências[18], embora o fornecimento tenha cortes constantes. A energia pública melhorou desde que a distribuição passou a ser feita pela empresa pública, uma vez que no passado, o bairro era abastecido por Postos de Transformação Privados. Entretanto, nem todos beneficiam da energia da rede pública, o que os leva a realizar “puxadas”. Quanto ao saneamento do meio, é de ressaltar a ausência de grandes amontoados de lixo no interior, embora os carros de lixos não possam aceder ao interior do bairro, sendo os moradores obrigados a deslocarem-se até as principais artérias que balizam o bairro e onde estão localizados os contentores de lixo. A maioria das casas do bairro não possui fossa séptica e as águas residuais são vertidas nas ruas, em valas a céu aberto feitas pelos moradores. 

Os relatos de criminalidade são constantes, uma criminalidade violenta, sendo muito frequente os assaltos com agressão física, motivados pelo consumo de álcool e drogas. O policiamento é fraco, agravado pela falta de uma esquadra no interior do bairro. A gravidez precoce foi também referida como sendo uma situação comum.

Organização comunitária

O bairro não tem comissão de moradores e depende directamente da Administração Distrital da Maianga.

1.3  Perfil dos agregados familiares

O estudo inqueriu 480 agregados, sendo 22,7% chefiados por mulheres e 77,3% por homens. Mas este resultado obtido pelo inquérito não parece traduzir completamente a actual realidade que é de grande desemprego, com forte impacto sobre os homens, sendo as mulheres, neste contexto, a suportar economicamente as famílias, geralmente com recurso ao comércio informal, ao subemprego (como empregadas domésticas, lavadeiras, engomadeiras ou babás) ou ainda à ajuda de familiares (geralmente, filhos mais-velhos ou irmãos destas).

Tabela n.º 1 Liderança dos agregados por género

Género

N

%

Homem

371

77,3%

Mulher

109

22,7%

Total

480

100,0%

Fonte: CEIC-CMI, Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

Um dos resultados do inquérito indica que persiste a crença de que o chefe da família tem de ser o homem. Crença esta sedimentada na cultura patriarcal tradicional. Por exemplo, sobre a liderança dos agregados, muitas mulheres inquiridas indicaram os seus respectivos esposos como chefes dos mesmos, mesmo sendo elas a suportar as despesas do lar ou que os esposos tenham outras mulheres. E mais, nenhum homem inquerido afirmou ou reconheceu não ser ele o chefe do agregado. Ainda segundo o inquérito, a liderança do agregado está ainda associada a capacidade financeira do chefe para custear as despesas (36,6%) e à responsabilidade de tomar as decisões no lar (14,8%). Isto demonstra a forte influência das normas socioculturais do que deve ser, em detrimento do que efectivamente é.

Tabela n.º 2 Razões para escolhido como CAF

 

N

%

Em falta

1

0,2%

Outra (especifique)

25

5,2%

Por ser a pessoa mais velha

33

6,9%

Por ser Homem

135

28,1%

Por ser o(a) proprietário(a) da casa

25

5,2%

Por ser quem assume as despesas da casa

190

39,6%

Por ter autoridade para tomar decisões

71

14,8%

Total

480

100,0%

Fonte: CEIC-CMI, Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

Em muitas circunstâncias, algumas mulheres manifestaram-se menos disponíveis que os homens, em razão do trabalho doméstico, de ter de ir vender ou pelo facto de o marido não estar presente para responder. Esta demostração do predomínio do espaço doméstico para as mulheres, é também um indicador da cultura da subalternização feminina e mais ainda, revelador sobre o quão enraizada está na consciência e nas práticas das próprias mulheres.

Tabela n.º 3 Percentagem de agregados chefiados por sexo e área de residência

 

Homem

Mulher

Total

N

%

N

%

N

%

Bairro

Kalawenda

101

27,2%

21

19,3%

122

25,4%

Catambor

74

19,9%

45

41,3%

119

24,8%

Paraiso

99

26,7%

22

20,2%

121

25,2%

Wenji Maka II

97

26,1%

21

19,3%

118

24,6%

Total

371

100,0%

109

100,0%

480

100,0%

Fonte: CEIC-CMI, Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

Mais de 84% dos Chefes de Agregados (CAF) não nasceu no local onde vive, sendo que 69% nasceu noutra província e 10% noutro município de Luanda. As principais razões da migração têm a ver com ter fugido da guerra, procurar melhores condições e juntar-se a familiares.

A média de idade dos agregados é de 40 anos, sendo que entre as mulheres inqueridas as idades variaram entre 21 e 81 anos de idade e para os homens, entre os 20 e os 90 anos. No entanto, os agregados são maioritariamente compostos por jovens e crianças, sendo que em média, cada agregado possuí cerca de 5,7 membros.

Quanto ao estado civil, são poucos os casados civil (3,3%) ou tradicionalmente (22,9%) e a maioria dos CAF vive em união de facto (40%), sendo os demais separados ou divorciados (4,4%).

Quando analisados apenas os agregados liderados por mulheres, constata-se p que mais da metade não tem companheiro, ou seja, é viúva ou solteira. Apenas 17,4% das chefes de agregados declarou ter marido ou companheiro.

A poligamia persiste como uma prática; foi reiteradas vezes declarado por mulheres, a presença de várias parceiras dos companheiros.

Tabela n.º 4 Estado civil do chefe do agregado

 

Agregados chefiados por Homem

Agregados chefiados por Mulher

Total

N

%

N

%

N

%

Casado(a) pelo processo civil

14

3,8%

2

1,8%

16

3,3%

Casado(a) pelo processo religioso

25

6,7%

1

0,9%

26

5,4%

Casado(a) pelo processo tradicional

106

28,6%

4

3,7%

110

22,9%

Casado(a) pelos processos (igreja, civil e tradicional)

30

8,1%

1

0,9%

31

6,5%

Separado(a) /Divorciado(a)

3

0,8%

18

16,5%

21

4,4%

Solteiro(a)

13

3,5%

27

24,8%

40

8,3%

Viúvo

5

1,3%

37

33,9%

42

8,8%

Vive maritalmente

175

47,2%

19

17,4%

194

40,4%

Total

371

100,0%

109

100,0%

480

100,0%

Fonte: CEIC-CMI, Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

Quanta a escolaridade, mais de 70% dos CAF estudou entre a 1.ª e a 13.ª classes, indicador insuficiente para proporcionar oportunidades de emprego ou até progressão na carreia, visto que as actuais exigências para emprego passam por ter licenciatura, complementada por qualificações técnicas, como possuir conhecimentos e habilidades de informática, por exemplo.

Observando unicamente os dados dos agregados liderados por mulheres, observamos que quase 60% estudou até a 13ª, mas que, deste numero, quase que a metade tem apenas o nível primário.

A baixa escolaridade das mulheres aliada a poucas oportunidades de promoção básica e profissional são alguns dos factores que contribuem para a permanência das condições de pobreza e da falta de mobilidade social das mesmas e da família, contribuindo para que a busca pelo sustento familiar seja feita sob muito esforço e em condições que afectam de forma negativa a saúde física e emocional das mulheres.

Tabela n.º 5 Escolaridade do CAF

 

 

Agregados chefiados por Homem

Agregados chefiados por Mulher

Total

N

%

N

%

N

%

Em falta

7

1,9%

0

0,0%

7

1,5%

Nenhum

8

2,2%

21

19,3%

29

6,0%

Alfabetização (lê e escreve o nome e aritmética elementar)

4

1,1%

9

8,3%

13

2,7%

Primária EP1 (1a a 6a classe)

72

19,4%

29

26,6%

101

21,0%

I Ciclo ES1 (7a a 9a classe)

110

29,6%

20

18,3%

130

27,1%

II Ciclo ES2 (10a a 13a classe)

99

26,7%

16

14,7%

115

24,0%

Pré-universitária (10a a 13a classe)

22

5,9%

8

7,3%

30

6,3%

Universidade

42

11,3%

5

4,6%

47

9,8%

Total 371 100,0% 109 100,0% 480 100,0%

Fonte: CEIC-CMI, Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

97% dos CAF pratica a religião cristã, e 89% fala português, seguido de kikongo (5,2%), kimbundu (2,5%) e umbundu (1,5%).

 Tabela n.º 6 Línguas faladas

 

Agregados chefiados por Homem

Agregados chefiados por Mulher

Total

N

%

N

%

N

%

Kikongo

22

5,9%

3

2,8%

25

5,2%

Kimbundu

10

2,7%

2

1,8%

12

2,5%

Outra (especifique)

5

1,3%

1

0,9%

6

1,3%

Português

329

88,7%

101

92,7%

430

89,6%

Umbundu

5

1,3%

2

1,8%

7

1,5%

Total

371

100,0%

109

100,0%

480

100,0%

Fonte: CEIC-CMI, Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

2. Género e pobreza

“Há crise de fome, crise de saúde, crise de trabalho, só vive bem quem trabalha. Os mercados ficam distantes. Os preços são elevados (…)”
Uma mulher no Kalawenda (2017)

Este capítulo é dedicado à relação entre género e pobreza, com enfoque na pobreza da mulher. A sua abordagem expõe e analisa as condições de vida e os factores da pobreza feminina no contexto da periferia luandense através da (2.1) articulação de dados quantitativos e qualitativos, primários e secundários, saídos tanto da leitura dos espaços de pesquisa quanto de leitura documental e bibliográfica; (2.2) narrativa do orçamento da família e da gestão das necessidades familiares, a partir da experiência das mulheres, por si relatadas em entrevistas individuais e grupos focais; (2.3) considerações sobre o (des)emprego da mulher, com realce para a questão da informalidade e da kixiquila; e, por fim, (2.4) avaliação das relações de género nos espaços de pesquisa, procurando demostrar as reciprocidades entre homens e mulheres, bem como as situações de domínio e subalternidade.

2.1  Pobreza das mulheres

A pobreza é uma realidade em Angola. Considerando as condições sociais e o consumo da população, o Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola (CEIC-UCAN) fixou-a em 44,1%, em 2016 (CEIC-UCAN, 2016, p. 185). Outros dados indicam que, para 8 milhões de angolanos, a pobreza é extrema, significando que cerca de 30% de pessoas vive com menos de 1 dólar por dia (Novo Jornal, 2017[19]), o que, nos termos actuais significa que, estes angolanos gastam à volta de 200-370,00 kwanzas para as suas necessidades diárias. Desde finais de 2013 que se nota o agravamento das condições económicas e sociais das famílias, como consequência da falta ou diminuição do rendimento e do emprego.

Desigualdade e pobreza não são o mesmo fenómeno. Entretanto, a sua natureza complexa e multidimensional converge em alguns factores. Apesar de ser frequentemente referido que as mulheres representam a maior quota da pobreza, figurando entre as categorias mais vulneráveis e excluídas, à semelhança das crianças e dos idosos, a feminização da pobreza em Angola ainda não está quantificada. A falta de dados estatísticos dificulta a obtenção de uma compreensão real do fenómeno, embora não seja muito difícil perceber, do ponto de vista observação empírica, que a realidade não mudou muito.

Depois de toda a evolução conceptual, na tentativa de não apenas abarcar os factores determinantes, mas explicar melhor a pobreza, parece surgir o entendimento de que a pobreza é realmente mais do que a falta de dinheiro, sem desconsiderar o papel fundamental que a renda joga no combate à mesma. Se considerarmos que a “pobreza deve ser entendida como a privação da vida que as pessoas realmente podem levar e das liberdades que elas realmente têm” (Crespo e Gurovitz, 2002, p. 6), então, devemos incluir o género, para explicar a vida e a liberdade que as mulheres podem, realmente, levar ou ter, no contexto da periferia em Luanda.

Os factores não económicos da pobreza estão relacionados a: idade, papéis sexuais e sociais (os papéis de marido ou de mulher, de mãe ou de pai, etc.); localização (viver em um bairro urbanizado ou na periferia); condições epidemiológicas (a presença ou ausência de doenças endémicas) (Ibidem), bem como informação e conhecimento (a inteligência), dentre outros bens culturais, que nem sempre são controláveis.

Luanda é a capital política e económica de Angola, território original do povo ambundu. É o centro decisório e considerada a província das oportunidades. Por essa razão, é a mais populosa do país, com cerca de 27% da população total residente (INE, 2014, p. 32). A pressão do crescimento populacional é tanta, que é também a província com a maior densidade populacional, com 368 hab/m2, cerca de 18 vezes superior à média nacional. Entretanto, tal como a tendência do crescimento nacional, quase metade da população em Luanda tem menos de 15 anos, representando cerca de 43%, o que faz dela uma cidade bastante jovem.

Tabela n.º 7 População de Luanda

 

Total da População

Mulher

Homem

 

6.945.386

3.543.390

3.401.996

Média de pessoas por agregados

4.7

 

 

Proporção da população dos 15-25 anos

1.371.540

717.746

653.794

Índice de masculinidade

96

N.A

N.A

Proporção da população com 25-64 anos

2.470.580

1.233.045

1.237.535

Proporção da população com 65 ou mais anos

102.982

62.268

40.714

Índice de envelhecimento

4

N.D

N.D[20]

Índice de longevidade

34.0

N.D

N.D[21]

Índice de rejuvenescimento da população economicamente activa

640

N.D

N.D[22]

Fonte: CEIC-UCAN/CMI a partir do INE, 2014.

Relativamente ao ensino, Luanda tem 85,9% da população com 15 ou mais anos alfabetizada e possui, também, a maior proporção de pessoas, com 24 ou mais anos, com o ensino superior concluído, representando cerca de 5,4%. Por seu turno, a taxa de emprego é de 36%[23] e a de desemprego de 34%, muito acima da taxa nacional fixada em 24, 2%. Note-se que, para o INE, são desempregadas todas as pessoas com 15 ou mais anos que, no período de referência (de aplicação do censo) se encontravam sem trabalho e disponíveis para trabalhar (2014, p. 63). Para o mesmo INE, trabalho é a “actividade económica que uma pessoa tenha exercido durante pelo menos 1 hora, podendo este ter sido trabalho remunerado, trabalho não remunerado ou trabalho na produção para consumo próprio.” (2014, p. 200).

Quando referida a mão-de-obra em sectores especificos, nota-se claramente que, apesar de os valores não ultrapassarem os 12%, a área do comércio é a que mais absorve trabalhadores.

Tabela n.º 8 Actividades Económicas em Luanda

Comércio

10%

Administração e serviços de apoio

8%

Transportes e construção

7%

Armazenagem e comunicação

6%

Agricultura[24]

11,9-34,4%

Fonte: CEIC-UCAN/CMI a partir do INE, 2014.

Quanto aos serviços públicos, os dados indicam que Luanda é das províncias com os melhores indicadores de acesso a alguns serviços públicos, seja pela quantidade seja pela relativa qualidade dos recursos necessários aos mesmos, tais como água (46,5%), electricidade da rede pública (56-66,5%), instalações sanitárias apropriadas (91%) e até mesmo saúde e educação,

Na periferia luandense, a pobreza das mulheres é material, visível e marcante. A falta de dinheiro, emprego, bens e serviços, bem como o acesso bastante limitado (em quantidade e qualidade) aos que existem, acentua a condição de precariedade das mulheres. O custo de vida é mais elevado em Luanda que em outras províncias, daí que as mulheres com poucos rendimentos, enfrentam grandes dificuldades em obter o que precisam. Neste sentido, é possível encontrarem-se agregados cujo rendimento para o orçamento mensal seja de mais de 100 mil kwanzas, mas que nem por isso, conseguem suprir todas as necessidades, sejam de alimentação, saúde e outras. Por isso, tal como noutras realidades, a pobreza em Luanda também toma contornos complexos e multidimensionais, na medida em que nem sempre são apenas as condições materiais que a determinam, sendo importante também inserir outros elementos como a existência de serviços públicos de saúde, educação, programas de fomento do emprego local (e outros), e a capacidade que os agregados podem ter para buscar melhores condições de vida.

Uma das ferramentas utilizadas para captar a pobreza na periferia foi a de motivar a autodefinição e a autorrepresentação. A visão subjetiva das mulheres sobre o fenómeno no seu bairro tem em comum, o facto de a maioria associar pobreza com falta de condições materiais (falta de comida, falta de dinheiro), falta de serviços públicos (saúde, educação e emprego) e falta de instrumentos de capacitação e habilitação, como educação. Diante dos baixos níveis de escolaridade da maior parte das mulheres, há uma compreensão generalizada de que a falta de estudos é um factor determinante na continuidade da pobreza. Reconhecendo que a educação tem um papel importante da aquisição do emprego qualificado e na melhoria da compreensão sobre os fenómenos a sua volta.

As mulheres, em geral, têm a pobreza acentuada pela sua condição feminina. Existem estudos que referem que a pobreza das mulheres, decorrem também da construção desigual das relações entre homem e mulher (a chamada feminização da pobreza), e que por essa razão o seu enfrentamento não pode ser feito sem que sejam encarados os factores de género que promovem a sua persistência, como seja, a sobrecarga das mulheres com o trabalho doméstico e as responsabilidades do lar, mais concretamente, o cuidado dos filhos e do marido.

Embora as mulheres representem um grupo menos favorecido, a pobreza não as afecta da mesma forma e na mesma dimensão. É possível identificar mulheres mais pobres que outras; mulheres com mais dificuldades que outras; ou mulheres com certos benefícios e privilégios. Esta diferenciação está associada a diferentes factores, como renda, escolaridade, estado civil, emprego, desemprego, idade e saúde física.

Ilustração 5: Jovem vendedora

Foto: Iselin Åsedotter Strønen

No sentido de continuar a analisar a pobreza e captar a percepção dos moradores dos espaços de pesquisa sobre a sua própria condição, foi realizado o exercício de wealth ranking, que consistiu em juntar outro grupo de moradores, escolhidos entre si, constituído por homens e mulheres. A discussão decorreu em torno das noções de pobreza, riqueza e suas razões. No Paraíso, por exemplo, a maioria dos participantes considerou que, entre dez famílias, 5 a 6 podem ser consideradas pobres miseráveis, 3 pobres normais e duas ricas. Esta discrição sugere que a percepção é de que a pobreza é desigual e não afecta todos da mesma maneira, na mesma comunidade. Há os pobres miseráveis, os pobres normais e os ricos. Esta distinção deriva do facto de as condições de vida de cada um variar, sendo que alguns não possuem quase nada e outros possuem um pouco mais.

Ao longo das discussões, os participantes consideraram que um pobre miserável ohukui (umbundu), pulungo (kimbundu) ou wahepa (nhaneca umbi), como o expressaram nas suas línguas tradicionais –, vive em casa pequena, construída sem material de qualidade, geralmente o chão não é pavimentado com cimento, sem eletrodomésticos. Via de regra, possui apenas colchão (e não cama), cadeiras de plástico e fogão à gás, sem forno ou cozinha no carvão. Os filhos não frequentam a escola, têm as roupas rasgadas e/ou comem no lixo.

Os pobres normais – wadiama (kimbundu), ochiepi (nhaneca umbi) – possuem casas em condições melhores. Geralmente, o chão é cimentado, quiçá revisto de mosaico, tem alguns electrodomésticos. Tais pobres possuem outros bens, como cama, cadeiras em madeira, mesa de madeira, estante, fogão a gás com forno, sendo que os filhos vão à escola, as roupas são gastas mas não rasgadas, não comem no lixo, apesar de não fazerem todas as refeições do dia.

Já os ricos – okwete (umbundu), nvuama (kimbundu) ou omuhona unatcho (nhaneca umbi) –, são os que vivem bem, o que significa morar em casas com mais de três cómodos, geralmente com revestimento de mosaico no chão, e ter carro próprio. Possuem eletrodomésticos, e outros bens como: cadeirões, cadeiras, mesas, estantes, fogão a gás, gerador. Os filhos frequentam a escola, quando estão doentes vão à clínica, e viajam nas férias.

Existem ainda os mais ricos ou bossangas, que geralmente não vivem na periferia. O local de residência preferencial destes é a cidade.

Nas discussões, foi possível perceber o quanto se acredita no emprego e na educação, como formas para combater a pobreza. E é precisamente nessas áreas, que os entrevistados revelaram enfrentar mais dificuldades no acesso. Grande parte dos participantes declarou que muitas famílias reduziram a quantidade e a qualidades das refeições. Houve mesmo relatos sobre crianças que, por falta de comida em casa, dedicam parte do dia a recolher comida no lixo. Comprar roupa passou a ser considerada uma despesa luxuosa, daí muitas crianças com roupas rasgadas. A pobreza não faz distinção de sexo, mas afecta de forma diferenciada os homens e as mulheres, os citadinos e os periféricos. A consciência de que a pobreza está relacionada a um certo grau de satisfação ou a determinado nível de privação de “certas coisas” é bastante comum. Nas entrevistas e outros depoimentos, ao longo do trabalho de campo, a maioria considerou que a “vida das pessoas está mal, muitas famílias não estão a fazer as três refeições por dia, associada a falta de dinheiro, de emprego e de condições para uma vida digna”.

Entre as razões da pobreza, os participantes apontaram a falta de dinheiro, a falta de comida, o desemprego, o aumento dos negócios informais, a subida dos preços, a falta de escolas, as condições das casas. Apesar de a maioria dos agregados possuir residência construída com cimento, e estar coberta com chapa de zinco, as condições no seu interior podem variar bastante variáveis

Gráfico n.º 1 Bens que possui o agregado

Fonte: CEIC-UCAN/CMI a partir do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

Pode inferir-se que as mulheres da periferia são afectadas pela pobreza da privação das capacidades. Capacidades entendidas como combinaçoes alternativas de funcionamentos[25] de possivel realizaçáo (Crespo e Gurovitz, 2002, p. 5), liada à falta de bens, de serviços, de oportunidades e de apoio ou ajuda institucional.

A pobreza feminina em Angola foi assumida como um dos principais desafios para a igualdade e a equidade de género. A Política Nacional para a Igualdade e Equidade de Género, aprovada pelo Decreto Presidencial n.º 222/13 juntamente com a Estratégia de Advocacia e Mobilização de Recursos para a Implementação e Monitorização da Política de Género, reconhece que há desigualdade entre os homens e as mulheres em Angola, e que para que haja a devida equidade no tratamento das mulheres e dos homens, é importante combater a pobreza, mudar a cultura do predomínio do homem sobre a mulher, bem como tornar a desigualdade das mulheres e a questão do género em objecto de planificação política, de política pública, e promover o acesso e controlo das mulheres aos recursos políticos, económicos e culturais.

Apesar de o documento recomendar uma série de medidas, a vários níveis e por vários departamentos ministeriais, a reduzida capacidade de implementação, aliada ao profundo desconhecimento dos resultados destas medidas, permitem questionar o sucesso da política e se as metas preconizadas foram efectivamente alcançadas[26].

Nos espaços da pesquisa, a falta de acções de apoio à mulher são constantemente referidas. A eficácia das políticas de género pode também ser aferida pelo impacto que estas geram nas mudanças de comportamentos e práticas negativas.

Entretanto, a capacidade de compreender as variáveis de género para fazer da acção política, nesse sentido, uma acção realista, depende grandemente da qualidade dos quadros nessa área e dos recursos disponibilizados para o efeito. Nas administrações municipais, existem as Direcções dos Antigos Combatentes, Promoção da Mulher e Acção Social, que, entre outras obrigações, estão encarregadas de materializar a política provincial de género, mas, na prática, as únicas[27] medidas que vem sendo levadas a cabo são as do combate à violência doméstica, com todas as insuficiências que se possam ainda referir[28].

Conhecer os problemas da mulher, embora seja importante, parece não ser prioridade na agenda política local. A falta de recursos financeiros, no geral, é um problema bastante referido por todos. Nas comunidades, as mulheres destacam a falta de unidades sanitárias, a falta de condições nessas unidades, a falta de escolas, a falta de água ao domicilio, a falta de luz para conservar e racionalizar o consumo alimentar da família, a criminalidade, a violência[29] dos fiscais sobre as zungueiras e outras vendedoras, a falta de emprego (geralmente dos maridos e filhos) e a alta de preços dos alimentos. Entretanto, é importante acrescentar que não se trata apenas da falta destes serviços, senão também de políticas de integraçao das mulheres, visando a garantia efectiva de acesso pelas mulheres à tais serviços, bem como adequação (ao mais possível) as necessidades especificas de cada género, e de políticas de conciliação, em vista aplicação de medidas e criação de serviços que incentivem a participação masculina na gestão das tarefas familiares e apoio às mulheres na gestão das responsabilidades familiares, como por exemplo creches comunitárias e água ao domicílio, podem aliviar às mulheres da tarefa de acarretar água e cuidar das crianças.

Programas de apoio à primeira infância, programas de apoio à jovem, programas de integração da adolescente grávida no ensino, programas sobre saúde sexual e reprodutiva, programas de formação técnica, programas de alfabetização, programas de emprego, programas de fomento do pequeno negócio, programas de promoção de renda familiar, programa de combate a violência sexual, programas de género nas escolas primárias, programas apoio nutricional e segurança alimentar para as famílias, programa de eletrificação e programa água ao domicilio são, entre outras, algumas das medidas a considerar na definição de uma política de combate à pobreza ou de igualdade e equidade de género.

Ilustração 6: Instalações sanitárias

Foto Iselin Åsedotter Strønen

As condições básicas e os serviços essenciais, como água potável, saneamento, transportes públicos, hospitais e escolas são factores importantes na análise da pobreza, pois explicam, em parte, as condições de vida das populações. Em geral, a falta de bens e serviços sociais é notória. A insuficiente quantidade e a falta de qualidade estão entre as principais reclamações. Entretanto, apesar de se verificar algum investimento público nos sectores da água e energia, os dados mostram que mais de 60% dos agregados não tem água domiciliar. E que, por este facto, precisa recorrer a fontes alterativas como chafariz, cisternas, vizinhos ou construir um reservatório particular, os chamados “tanques de água”, geralmente de estrutura quadrangular, feitos no subsolo do quintal da casa.

Tabela n.º 9 Principal fonte de água para beber

 

 

Agregados chefiados por Homem

Agregados chefiados por Mulher

Total

N

%

N

%

N

%

Em falta

1

0,3%

2

1,8%

3

0,6%

Água do vizinho

91

24,5%

23

21,1%

114

23,8%

Camião cisterna

11

3,0%

1

0,9%

12

2,5%

Chafariz

57

15,4%

17

15,6%

74

15,4%

Outro (especificar)

30

8,1%

9

8,3%

39

8,1%

Poço

1

0,3%

0

0,0%

1

0,2%

Tanque

56

15,1%

20

18,3%

76

15,8%

Torneira no quintal / dentro de casa

124

33,4%

37

33,9%

161

33,5%

Total

371

100,0%

109

100,0%

480

100,0%

Fonte: CEIC-UCAN/CMI a partir do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

O acesso à água é fundamental, pois dela depende a higiene pessoal dos membros do agregado, a confecção dos alimentos, a higiene da roupa, a limpeza da casa e outras tarefas essenciais para a limpeza doméstica. Em média, as famílias gastam cerca de 250 litros de água por dia. Muitas têm de pagar cerca de 50 kwanzas por um bidon de 20 litros. São as mulheres que acarretam água, por isso despendem muito mais esforço e dedicam mais tempo para executar esta actividade doméstica. O custo da transportação, implica levar em consideração que muitos lugares, de onde se retira água, estão há cerca de 30 minutos de distância, o que implica, no Wenji Maka, por exemplo, fazer travessia de estradas, com muito tráfego.

A capacidade nutricional dos agregados é um indicador importante não apenas para aferir a sua condição de renda, mas também para avaliar a sua condição social e humana, com consequências notáveis na questão da produtividade. O principal quadro alimentar das famílias, indica que mais de 70% dos agregados consumiu peixe, arroz, verduras e pão, na semana anterior a pesquisa. Entretanto, muitos são os relatos da falta de alimentos ou da insuficiência destes para as três refeições básicas, ao longo do dia e, consequentemente de um mês completo. No Kalawenda foi possível entrevistar uma moradora que estava há dois dias sem comer. Com 5 filhos, a mesma revelou que era desempregada, assim como o marido. Naquele momento trazia consigo uma tábua de peixe seco (sardinha) e pediu a outra moradora um quilo de arroz para oferecer, ao menos, uma refeição à sua família, bastante enfraquecida depois de dois dias.

As mulheres dizem que a vida está mais difícil desde meados de 2014 e que o número, quantidade e qualidade de refeições diminuiu, de três para duas, sendo mais comum ter o peixe (sardinha) ou o frango como acompanhamentos, por serem os mais baratos.

A carência alimentar das famílias agravou-se a partir de 2014, altura em que o preço do petróleo baixou, as divisas começaram a escassear e o preço dos alimentos subiu. Com o desemprego massivo que se seguiu, muitas famílias que já tinham um quadro alimentar mais ou menos estável e regular, voltaram ou pioraram a sua condição nutricional.

Na maior parte das vezes, a dieta é fraca, na base de pão simples[30] com chá, ou arroz branco[31] com peixe, pelo facto de serem os produtos mais baratos e acessíveis, podendo, média, um monte de 4 peixes sardinhas custar entre 100-200 kwanzas.

Gráfico n.º 2 Alimentos consumidos na semana anterior à pesquisa

Fonte: CEIC-UCAN/CMI a partir ­­do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

Os gastos com alimentação são elevados dependendo no tamanho do agregado, podendo um agregado com 12 pessoas gastar cerca de 100 mil kwanzas/mês. Nem sempre essa quantia garante que o agregado possa oferecer uma dieta mais rica, variável e regular aos seus membros, ao longo de 30 dias completos.

A administração do dinheiro para alimentação é em geral atribuída as mulheres que usualmente adoptam a estratégia de comprar a grosso[32], quando alguém no agregado mantém um rendimento fixo mensal. Isto possibilita racionalizar o uso repartido dos alimentos, bem como fazer alguma poupança, dependendo do rendimento. No caso das famílias que dependem de negócios informais, como zungar ou vender em mercados, ou pequenos biscates, como consertar canos ou instalações elétricas, a compra dos alimentos é diária, dependendo da entrada ou não de rendimentos, sendo que se pode gastar entre 500 a 2000 kwanzas por dia, para uma refeição apenas. As que se encontram no desemprego (formal ou informal) dependem da generosidade dos vizinhos e da solidariedade familiar.

O fornecimento de energia elétrica facilita as actividades de conservação dos alimentos, além do lazer e segurança. Mais de metade dos agregados declarou beneficiar de energia elétrica da rede pública (54,4%), embora o fornecimento não seja constante e nem sempre permita o uso da electricidade nos moldes em que agregado necessita, como seja, para funcionar a geleira, televisor e/ou arca refrigeradora. Por este facto, muitos agregados também deixaram de poder comprar bens alimentares a grosso, aumentando os gastos com alimentaçao.

Tabela n.º 10 Principal fonte de energia

 

Agregados chefiados por Homem

Agregados chefiados por Mulher

Total

N

%

N

%

N

%

Gerador pessoal

49

13,2%

7

6,4%

56

11,7%

Lanterna

44

11,9%

9

8,3%

53

11,0%

Lenha

1

0,3%

2

1,8%

3

0,6%

Outra (especifique)

27

7,3%

7

6,4%

34

7,1%

Petróleo

5

1,3%

2

1,8%

7

1,5%

Rede eléctrica pública

191

51,5%

70

64,2%

261

54,4%

Vela

54

14,6%

12

11,0%

66

13,8%

Total

371

100,0%

109

100,0%

480

100,0%

Fonte: CEIC-CMI, a partir dos dados do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

A sensação generalizada dos agregados é de que a vida está a piorar a cada ano e sem vislumbre de melhorias. Mesmo com um certo cepticismo, a maioria dos agregados aposta na educação das crianças e entende que é fundamental para mudar o futuro da criança e da família.

17,1% das crianças entre os 06 e os 18 anos não frequenta a escola. A possibilidade de esse número ser maior aumenta pelo facto de muitos entenderem que as explicações particulares e certos colégios privados[33] são escolas, no sentido comum. Dos agregados com crianças em idade escolar, 47,9%, quase metade dos agregados, tem os filhos a estudar em uma escola privada, que além dos custos, comporta ainda o risco do não reconhecimento dos estudos.

Tabela n.º 11 Tipo de escola

 

Agregados chefiados por Homem

Agregados chefiados por Mulher

Total

N

%

N

%

N

%

Colégio privado

155

50,5%

32

38,6%

187

47,9%

Escola comparticipada

17

5,5%

1

1,2%

18

4,6%

Escola pública do bairro

56

18,2%

19

22,9%

75

19,2%

Escola pública do município

22

7,2%

10

12,0%

32

8,2%

Outro (especifique)

57

18,6%

21

25,3%

78

20,0%

Total

307

100,0%

83

100,0%

390

100,0%

Fonte: CEIC-CMI, a partir dos dados do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

Embora seja uma despesa variável, os agregados declaram que gastam entre 10 mil a mais de 300 mil kwanzas, por ano, na educação das crianças. Esta despesa inclui propinas, transporte, material escolar e outros bens considerados essenciais. Quando os pais não possuem esses rendimentos, e não conseguem ajuda dos parentes para o efeito, a solução tem sido retirar a criança da escola, na esperança que a situação melhore, no futuro.

Ao longo das entrevistas colectivas, foi possível captar que a percepçao sobre o valor da educação é de que a mesma é como um investimento famíliar, pela mudança que pode provocar na situação do beneficiado, no futuro. Mas o investimento das famílias é ligeiramente diferente, no meio das dificuldades, conforme se decida investir no rapaz ou na rapariga. Os dados indicam que há mais meninas foram do sistema de ensino, e que quando se trata de falta de dinheiro, mais raparigas deixam de beneficiar de um investimento extraordinário da família para continuar os seus estudos.

A decisão de não investir na carreira estudantil das meninas é indicada como uma prática de discriminação negativa, contra as mulher e um factor que contribui para a pobreza das mulheres e, consequentemente, do agravamento das suas dificuldades no futuro.

Gráfico n.º 3 Razões para não ir à escola (crianças entre 06- 18 anos)

Fonte: CEIC-CMI, a partir dos dados do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

Apesar de se referir que o ensino é gratuito nas escolas públicas, os relatos de cobranças irregulares foram constantes. Pelo que, a falta de renda das famílias é agravada pela preocupação constante de poupar ou endividar-se para garantir a matrícula das crianças.

Mais de 55% dos agregados declarou pagar entre 5 a 50 mil kwanzas no acto de matrícula para garantir a vaga da criança. Se considerarmos vários cenários para um agregado com mais de 4 crianças para estudar, o custo da despesa para o agregado é elevado, seja do ponto de vista económico como do ponto de vista social e humano, com desvantagem para as raparigas, que se encontram, a priori, desprotegidas pelos costumes e práticas quotidianas, de achar que precisam menos de educação, porque podem sobreviver pelo casamento, sendo sustentadas pelo marido.

Tabela n.º 12 Quanto se paga no acto de matrícula

 

Agregados chefiados por Homem

Agregados chefiados por Mulher

Total

N

%

N

%

N

%

Ate 15 mil kwanzas

30

11,0%

7

9,1%

37

10,6%

Ate 30 mil kwanzas

34

12,5%

11

14,3%

45

12,9%

Ate 5 mil kwanzas

88

32,2%

14

18,2%

102

29,1%

Mais de 100 mil kwanzas

1

0,4%

0

0,0%

1

0,3%

Mais de 50 mil kwanzas

13

4,8%

8

10,4%

21

6,0%

Nada

107

39,2%

37

48,1%

144

41,1%

Total

273

100,0%

77

100,0%

350

100,0%

Fonte: CEIC-CMI, a partir dos dados do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

Mais de 20 CAF relataram a falta de registo civil dos seus membros como impedimento para estudar. A falta de Cédula Pessoal ou de Bilhete de Identidade é uma realidade frequente. Pais há que referiram nunca ter possuído bilhete de identidade, que por essa razão encontram dificuldades em fazer o registo dos seus filhos.

O direito ao nome e à identidade é um pressuposto fundamental para a cidadania moderna, que alicerça o seu modo de funcionamento na aquisição de uma identidade e consequente nacionalidade, como condições para atribuição de direitos e benefícios civis, políticos, sociais e económicos. 50,8% dos CAF declarou não possuir nenhum documento de identificação. 44% das mulheres chefes de agregados não possui documento de identificação, como consequência declarou limitações para o registo de actos civis, designadamente tratar o bilhete de identidade.

As privações e limitações que decorrem desta condição vão desde não poder casar, viajar até ao não estudar ou trabalhar, em um ambiente regular e seguro, como sejam as escolas públicas ou privadas reconhecidas ou empresas privadas e instituições públicas.

Tabela n.º 13 Registo Civil

 

Agregados chefiados por Homem

Agregados chefiados por Mulher

Total

N

%

N

%

N

%

Não

196

52,8%

48

44,0%

244

50,8%

Sim

175

47,2%

61

56,0%

236

49,2%

Total

371

100,0%

109

100,0%

480

100,0%

Fonte: CEIC-CMI, a partir dos dados do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

O quadro epidemiológico das mulheres abrangidas pelo estudo indica a presença constante, e nalguns casos até crónica, de dores corporais, nomeadamente: cabeça, perna, peito e coluna.

Diante da situação das famílias e das condições dos espaços da pesquisa, a condição de saúde mais relatada é a presença de febres. Não sendo estas uma doença e sim um sintoma, a falta de diagnósticos assertivos é ainda outra dificuldade, no sistema de saúde, que as famílias têm de gerir.

Apesar de, no geral, o quando ser predominantemente negativo, para a presença de doenças no seio familiar, refira-se que a malária e a tosse estão entre as mais referidas, ocupando mais de 40% das doenças ocorridas, no mês anterior a pesquisa.

A malária e a tosse são consideradas doenças causadas pelas condições do meio, seja falta de saneamento básico, em casa e no bairro, ou a existência de poeira e outros factores ambientais.

Grafico n.º 4 Doenças contraídas no mês anterior à pesquisa

Fonte: CEIC-CMI, a partir dos dados do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

38,3% recorre ao posto médico para se tratar, mesmo que a qualidade do serviço não responda com eficiência aos problemas que o doente apresente, a falta de recursos e de alternativas, como recurso a clínicas privadas, força-os a insistirem em instituições com constantes falta de quase tudo, desde o pessoal até aos materiais gastáveis. Os postos médicos são unidades pequenas, localizadas nos bairros, com objectivo de fazer o primeiro atendimento ao paciente. O problema mais relatado é o de que essas unidades continuam a funcionar com muitas dificuldades que vão desde falta de médicos ou enfermeiros capacitados, falta de equipamentos ou material para exames e análises, até à falta de medicamentos e outros meios de diagnóstico e cura.

Entretanto, para os moradores do Wenji Maka II e do Catambor o cenário é ligeiramente diferente, por se encontrarem próximo de unidades hospitalares de referência, como o Hospital Geral de Luanda, no Camama, o Hospital do Prenda, o Hospital Josina Machel e a Pediatria de Luanda, respectivamente. Estas unidades por serem maiores e com mais recursos, possibilitam um melhor tratamento. Com a crise financeira actual, a falta de recursos vem sendo generalizada e o impacto é negativo, mais ou menos, para todos os utentes do sistema.

A falta de capacidade de resposta não é apenas qualitativa, é também quantitativa. Pois, em todos os bairros da pesquisa, a existência de postos médicos privados é visível e o recurso aos mesmos é muito frequente. Nestes, os custos variam desde a complexidade do problema ao tempo de tratamento.

Tabela n.º 14 Unidades de saúde frequentadas pelos membros do agregado

 

Agregados chefiados por Homem

Agregados chefiados por Mulher

Total

N

%

N

%

N

%

Em falta

7

1,9%

0

0,0%

7

1,5%

Centro de saúde

88

23,7%

29

26,6%

117

24,4%

Clinica

29

7,8%

10

9,2%

39

8,1%

Hospital central

14

3,8%

4

3,7%

18

3,8%

Hospital geral

26

7,0%

11

10,1%

37

7,7%

Hospital municipal

57

15,4%

21

19,3%

78

16,3%

Posto medico

150

40,4%

34

31,2%

184

38,3%

Total

371

100,0%

109

100,0%

480

100,0%

Fonte: CEIC-CMI, a partir dos dados do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

Embora mais de 30% tenha referido a existência de um sistema de cobranças irregulares nas unidades sanitárias públicas, a corrupção na saúde parece ser menor que na educação.

Tabela n.º 15 Quanto se paga na unidade de saúde

 

Agregados chefiados por Homem

Agregados chefiados por Mulher

Total

N

%

N

%

N

%

Ate 30 mil kwanzas

3

0,9%

1

1,0%

4

0,9%

Ate 5 mil kwanzas

91

26,8%

21

20,2%

112

25,2%

Mais de 100 mil kwanzas

1

0,3%

0

0,0%

1

0,2%

Mais de 50 mil kwanzas

5

1,5%

0

0,0%

5

1,1%

Nada

200

58,8%

75

72,1%

275

61,9%

Total

340

100,0%

104

100,0%

444

100,0%

Fonte: CEIC-CMI, a partir dos dados do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

A questão tem também que ver com os factores da mortalidade infantil em Angola. O inquérito demostrou que quase um terço dos agregados chefiados por mulheres perdeu pelo menos uma criança menor de 5 anos.

A garantia das condições de saúde, nas instituições e das pessoas, o estado e a capacidade nutricional dos agregados podem ser indicados como os principais desafios na luta contra a mortalidade infantil.

Tabela n.º 16 Quantidade de crianças menores de 5 anos que morre por agregado

N.º de crianças que faleceram antes dos 5 anos no agregado

Agregados chefiados por Homem

Agregado Chefiado por Mulher

Total

N

%

N

%

N

%

 

0

2

2,9%

0

0,0%

2

2,2%

1

41

59,4%

17

77,3%

58

63,7%

2

12

17,4%

2

9,1%

14

15,4%

3

4

5,8%

2

9,1%

6

6,6%

4

3

4,3%

1

4,5%

4

4,4%

5

3

4,3%

0

0,0%

3

3,3%

6

2

2,9%

0

0,0%

2

2,2%

9

1

1,4%

0

0,0%

1

1,1%

10

1

1,4%

0

0,0%

1

1,1%

Total

69

100,0%

22

100,0%

91

100,0%

Fonte: CEIC-CMI, a partir dos dados do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

A pobreza é uma realidade multidimensional e afecta de maneira diferenciada os homens e as mulheres. Ao contrário daqueles, as mulheres além das dificuldades no acesso à actividades produtivas e obtenção de renda, devem, pelo peso da cultura tradicional patriarcal velar pelo asseguramento das condições de vida da família, sofrendo directamente pela falta de bens e serviços públicos locais, pois, nessa condição, a provisão de tais bens não só é mais onerosa, do ponto de vista económico, como do ponto de vista físico.

2.2  O orçamento doméstico e gestão das necessidades familiares

O orçamento doméstico corresponde àquela parte das receitas que são destinadas aos gastos correntes da família, maioritariamente destinados a compra de bens alimentares: como comida e água.

Para as mulheres casadas, a vida familiar é da responsabilidade do casal, por isso o marido e a mulheres devem contribuir com o fruto do seu trabalho. Nestas situações, à mulher são atribuídas as responsabilidades do trabalho doméstico e da gestão corrente do lar, designadamente, comprar a comida, pagar a água, luz e comprar roupa dos filhos. Quanto ambos trabalham ou contribuem para o orçamento doméstico, o dinheiro da mulher é alocado para os gastos com alimentação e manutenção dessas despesas. Ao passo que o rendimento dos homens é geralmente destinado à despesa de investimento e poupança, como sejam: educação escolar dos filhos, obras na casa, ou até guardar. Podendo, algumas vezes ser destinado à saúde.

Dependendo dos rendimentos, a contribuição do marido varia entre 20-40 mil kwanzas, em muitos casos não é suficiente e, noutros, não é regular, pois algumas vezes, o próprio marido deixa de dar a sua contribuição. Algumas mulheres referiram que enfrentam conflitos com o marido por causa do dinheiro. Nos agregados, parece haver um clima de tensão à volta do dinheiro, motivado pela escassez do mesmo e a desconfiança dos homens, “que suspeitam que a mulher subtraia para proveito próprio”, conforme disse uma das moradoras, tendo outra admitido haver uma prática, entre algumas mulheres, de retirar algum dinheiro do orçamento familiar para proveito próprio, pelo facto de dele necessitarem para custear despesas pessoais com roupa, tratamento estético, transporte etc.

No sentido de compreender melhor a formação e gestão do orçamento doméstico, realizamos entrevista colectiva com 12 mulheres, no Wenji Maka II. Destas, 6 eram jovens entre os 18 aos 27 anos e as demais, mais velhas entre os 38 aos 58 anos. Quanto ao Estado civil, 7 vivem maritalmente, 4 eram jovens solteiras e uma era viúva, e o nível de escolaridade variava entre a 3.ª e a 13.ª classes.

Entre as casadas (incluindo as que vivem maritalmente), os maridos dão mensalmente dinheiro, que varia segundo o rendimento de cada uma e pode ser entre 20-30 mil kwanzas, sem incluir que a maior parte dos maridos fica responsável por pagar propinas em colégios ou faculdade dos filhos. Este orçamento não é contado no dinheiro que é dado à mulher, que geralmente destina-se à administração do lar, para: comida, água, pagamento de água e luz etc. As mulheres são as administradoras do dinheiro, embora tivesse surgido uma forte discussão sobre a tensão entre marido e mulher por causa do dinheiro. A maioria afirma que tem discussões com o marido por causa do dinheiro, algumas relataram mesmo que os maridos em alguns momentos deixam de dar a sua contribuição mensal, outras afirmam que quando reclamam junto dos maridos que o dinheiro é insuficiente, os maridos reclamam e suspeitam que as mesmas estejam a subtrair para proveito próprio. As mulheres reclamam que geralmente e com a subida dos preços, o dinheiro não chega para comprar comida.

Para as mulheres a educação dos filhos é muito importante, embora nem sempre têm dinheiro para financiar os estudos dos filhos na Universidade. Uma das jovens deu o seu testemunho pessoal dizendo que “teve de deixar de estudar por falta de dinheiro e começou a trabalhar para ajudar a mãe no sustento da família, hoje é professora em dois colégios”. As mulheres afirmam que o custo de vida e as preocupações aumentaram por causa das questões da saúde, educação e falta de dinheiro. Entretanto, as mulheres com marido, tem as despesas escolares custeadas pelos maridos, dependendo do nível académico e do número de filhos, varia entre 5 – 10 mil kwanzas por mês, por cada filho, sem contar com cerca de 15 mil kwanzas no início do ano para comprar uniforme e material escolar.

Ilustração 7: Uma criança com a sua avó, a mãe faleceu após dar-lhe a luz

Foto: Iselin Åsedotter Strønen

Quando no agregado não existe fonte de rendimento, é muito comum recorrer-se ajuda familiar. As mulheres recorrem aos filhos e filhas casadas ou aos irmãos por pedir ajuda quanto aos gastos correntes, especialmente alimentação. Ajuda pode ser em espécie ou em dinheiro, algumas disseram que os familiares chegam a enviar 500, 1000 ou até 2000 kwanzas. As mulheres solteiras administram elas mesmas o dinheiro. As jovens administram o seu próprio dinheiro que conseguem através de trabalho como professoras, atentendes em lojas e outros, ou por meio de iniciativas próprias (como vender gelado, bolinhos) ou prestação de serviço como fazer tranças) e destinam a ajudar no sustento da casa, geralmente para ajudar à mãe nos gastos domésticos.

Quanto à gestão, as mulheres afirmam que não estão a conseguir fazer poupança ou gastar com roupas e sapatos.

Tabela n.º 17 Fonte de receitas e gestão do orçamento doméstico

Receitas

Origem

Gestão das receitas

Destino

Casadas – 20 – 30 mil kwanzas

+ 40 – 60 mil kwanzas

Marido e ajuda familiar de filhas/ filhos adultos

Mulher e marido

·    comida

·    saúde

·    faculdade dos filhos

Solteiras (domésticas)

30 mil

Trabalho próprio e ajuda familiar

Mulher

·    comida

·    escola

·    táxi

Jovens

27 mil (prof.ª)

3500 – 13 mil

nada

Trabalho próprio como professora

lucros da venda

Rapariga

·    ajuda a mãe no sustento da casa

·    propina própria e dos irmãos

·    roupa (as vezes)

·    táxi

·    material escolar

Fonte: CEIC-CMI, a partir de dados recolhidos no terreno através do exercício Receitas e gestão do orçamento doméstico, com um grupo focal de mulheres, durante a pesquisa de campo, no Wenji Maka II.

Para as mulheres solteiras, a única fonte para o orçamento do agregado é o resultado da sua actividade produtiva. Em geral são vendedoras ou empregadas domésticas, cujos rendimentos variam de 500 kwanzas/dia à 30 mil kwanzas por mês. Esse rendimento é administrado por si e, em geral, é destinado às despesas com alimentação. Não sendo suficiente, as alternativas tem sido ajuda familiar ou a solidariedade de vizinhos. Para as mais solteiras o recurso a ajuda dos filhos é frequente. Quando se tratam de raparigas são instadas a vender ou trabalhar para contribuir no orçamento doméstico. Algumas são as raparigas que por causa da situação social e económica das famílias foram forçadas a deixar de estudar para trabalhar e ajudar á mãe no sustento da família. Seja como vendedora ou professora em colégios particulares, no bairro, a rendimento das mesmas tem permitido aumentar o orçamento doméstico para reforçar as despesas com a alimentação.

Embora a actividade produtiva da maior parte das mulheres não permita estabelecer um rendimento alto, fixo e regular, a mesma é que tem sido o grande suporte das famílias. Seja por ser a única fonte de rendimento ou complementar ao do marido ou filhos que trabalhem, apresenta-se como a fonte menos falível no investimento do bem-estar da família.

2.3  O emprego das mulheres

No geral, as actividades no sector informal e o trabalho doméstico predominam entre as actividades económicas dos CAF, representando mais de 40%, se associarmos os que trabalham por conta própria. É notável o predomínio do comércio retalhista (venda) entre as actividades económicas mais praticadas. Empregados no sector mais estável e seguro, considerado o menos vulnerável, que é o Estado, são 19% dos CAF, mesmo que isso não signifique um emprego melhor em termos de qualidade, seja pela categoria profissional, condições materiais ou de remuneração. O desemprego é fixado em 15%, associando as donas-de-casa e desconsiderando toda a actividade informal.

Ilustração 8: Zungueira no trabalho com o filho

Foto: Iselin Åsedotter Strønen

Especificamente para as mulheres, os números são ainda mais negativos. Cerca de 30% de mulheres são desempregadas e cumpre, com ajuda de filhas e, às vezes, de filhos, todas as obrigações domésticas; desde os trabalhos diários aos cuidados constantes, para os membros do agregado. Outras mulheres (29,4%) dedicam-se à venda. O que significa que, no âmbito da pesquisa, a principal actividade económica das mulheres é a venda. Seja como zungueira, vendedora de mercado com posto fixo (com um lugar determinado), ou à porta de casa, estas mulheres vendedoras estão muito mais expostas à precariedade de rendimentos e à falta de segurança social.

Quando analisados os dados no sector formal, percebe-se a diferença drástica entre homens e mulheres. Apenas 11 mulheres tem um emprego no sector público, normalmente ocupando as categorias mais baixas, como funcionária de limpeza.

Tabela n.º 18 Tipo de actividade por género

 

Agregados chefiados por Homem

Agregados chefiados por Mulher

Total

N

%

N

%

N

%

Em falta

1

0,3%

0

0,0%

1

0,2%

Camponês

4

1,1%

6

5,5%

10

2,1%

Conta própria com empregados

18

4,9%

1

0,9%

19

4,0%

Conta própria sem empregados

47

12,7%

4

3,7%

51

10,6%

Desempregado (estão a procura de emprego)

37

10,0%

23

21,1%

60

12,5%

Domestica (não estão a procura de emprego)

1

0,3%

15

13,8%

16

3,3%

Empregado do sector privado

110

29,6%

9

8,3%

119

24,8%

Estudante

1

0,3%

1

0,9%

2

0,4%

Funcionário público

82

22,1%

11

10,1%

93

19,4%

Outra (especifique)

29

7,8%

5

4,6%

34

7,1%

Reformado

15

4,0%

2

1,8%

17

3,5%

Trabalhador das autarquias locais (município)

2

0,5%

0

0,0%

2

0,4%

Trabalhador de empresa pública

5

1,3%

0

0,0%

5

1,0%

Trabalho ocasional ou sazonal

13

3,5%

0

0,0%

13

2,7%

Vendedor(a) ambulante / zungueira / quitandeira

6

1,6%

32

29,4%

38

7,9%

Fonte: CEIC-CMI, Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

Como se nota, quase um terço das mulheres socorre-se do sector informal para realizar alguma actividade económica. Para a OIT, o sector informal pode ser caracterizado por “um conjunto de unidades empenhadas na produçao de bens e serviços, tendo como principal objectivo a criaçao de empregos e de rendimentos para as pessoas nele envolvidas”. A informalidade resulta tanto da incapacidade de oferecer respostas adequadas ao contextos, como da má governaçao, e a pobreza é apontada como factor que propicia a sua expansão (OIT, 2005, pp. 24-25).

O sector informal é expressivo nos lugares da pesquisa, pois é o espaço para provisão de empregos, de rendimentos, de satisfação do consumo e outras necessidades das famílias. Entretanto, o sector informal engloba também uma área de serviços, como transporte, o câmbio da moeda (kinguilas e/ou doleiros) e outros, que podem ser prestados fora do espaço físico do mercado (Lopes, 2014).

Tabela n.º 19 Profissões mais comuns no bairro

OCUPAÇAO SOCIAL POR GÉNERO

Mulher

Homem

Vendedoras (zungueiras e de mercados)

Vendedores de mercado

Trabalhadoras domésticas

Taxistas

Professoras[34]

Pedreiros

Enfermeiras

Serralheiros

Pequenas comerciantes (donas de cantinas/lojistas)

Professores

Donas de salão de beleza

Eletricistas

 

Enfermeiros

 

Mecânicos

Fonte: CEIC-CMI, a partir de dados recolhidos no terreno através do exercício Matrix das actividades económicas femininas e masculinas, com um grupo focal de mulheres, durante a pesquisa de campo no Paraíso.

Embora exista um predomínio de actividades realizadas no sector informal, é possível encontrar mulheres em profissoes como de professora, enfermeira ou engenheira. Isto porque, essas mulheres beneficiaram de um investimento na educação, pela família, ou porque decidiram elas mesmas investir na continuidade dos estudos.

Tabela n.º 20 Profissões mais comuns no bairro

OCUPAÇAO SOCIAL POR GÉNERO

Mulher

Homem

Funcionárias de Limpeza

Mecânicos

Zungueiras

Taxistas

Empregadas Domésticas

Pedreiros

Professoras

Eletricistas

Médicas, Advogadas e Engenheiras

Bate-chapas

Curandeiras

Professores

Farmacêuticas

Curandeiros

 

Enfermeiros

 

Farmacêuticos

 

Zungueiros

 

Médicos

Fonte: CEIC-CMI, a partir de dados recolhidos no terreno através do exercício Matrix das actividades económicas femininas e masculinas, com um grupo focal de mulheres, durante a pesquisa de campo no Wenji Maka II.

Para melhor captar as dinâmicas das mulheres e as suas actividades económicas foi realizada uma entrevista colectiva com 4 mulheres, no Catambor. As mulheres deste grupo têm entre 50 -59 anos, duas têm marido, uma está separada, outra é viúva. A média de filhos é de 5 filhos por mulher. Todas as que têm filhos, no ensino nível primário e secundário, estão a estudar. Já os que devem ir a universidade não estao a estudar, por falta de dinheiro para pagar as propinas. O caso de uma delas é de ter 7 filhos e apenas um estar a estudar porque os outros seis precisam de entrar na Universidade. O nível académico das mulheres varia entre a 3.ª e a 4.ª classes, o número de membros no agregado entre 7 - 12 pessoas.

Entre as mesmas, uma refere que gasta em média 50 mil kwanzas/mês em comida, comprando á grosso; a que tem 12 pessoas no seu agregado gasta até 100 mil kwanzas por mês em comida; 4 mil kwanzas por mês em água corrente; dois mil e 500 – 6 mil kwanzas por mês em energia; 300-3 mil por dia em táxi, para os filhos que estudam distante; propina 10-30 mil kwanzas /mês para as que tèm filho no colégio; saúde mais ou menos 300 mil kwanzas por ano, se se contabilizar que em média duas a três pessoas adoecem de paludismo ou febres por ano, necessitando entre 10 – 15 mil kwanzas por pessoa para a compra de medicamentos. Vendedora de bombó com junguba (1) consegue por dia 2 mil e 500 kwanzas e 15 mil kwanzas /mês de ajuda do filho. Desse dinheiro não consegue comprar comida a grosso, sendo que gasta 3 mil kwanzas /dia para comprar a comida.

Algumas mulheres mudaram de negócio, porque os anteriores faliram. Passaram para outros de baixo rendimento. Todas concordam que é mais rentável vender comida crua.

Com a crise económica e financeira, grande parte das mulheres já mudou uma ou duas vezes de negócio, devido a redução da procura e da oferta. Algumas saíram de negócios mais rentáveis para menos rentáveis, outra mudaram apenas o tipo de produto a comercializar. Algumas entendem que comercializar produtos alimentares é sempre seguro e rentável, “afinal todos têm de comer”.

Caso n.º 1

Maria e Teresa são duas jovens angolanas que encontramos a embalar água em pequenos sacos de plástico para vender. Teresa era vendedora de gasosa, mãe de dois filhos, tem 19 anos, é solteira, estudou até a 4.ª classe e diz ter vindo do Uíge para viver com a família. Maria tem 21 anos, era vendedora de tomate e batata, tem 2 filhos e vive maritalmente. O seu marido faz biscate como serralheiro, mas se encontrava sem trabalho.

Teresa e Maria faliram nos seus anteriores negócios por falta de clientes. O actual negócio de água fresca consiste na compra de um balde de 20 litros há 25,00 kwanzas (vinte e cinco kwanzas), gelo e sacos plásticos que custa em média 150 – 100 embalagens, que podem durar até 3 dias. No final o negócio chega a render entre 500 – 600 kwanzas por dia. Esse dinheiro é todo destinado aos gastos correntes da família, mais concretamente alimentação. Sobre alimentação ambas partilharam que tem sido difícil manter à família, especialmente administrando as 3 refeições por dia. Vezes há em que, desde o ano antepassado, fazem apenas duas refeições por dia. Teresa diz que não recebe qualquer ajuda familiar, ao passo que Maria tem tido a ajuda do tio do marido, que paga as despesas escolares do filho, que é seu “chará” ou homónimo.

 

No Wenji Maka II, outro grupo de mulheres fala-nos das suas actividades económicas e gestão das receitas. Da discussão participaram 11 mulheres, todas vendedoras. A média de filhos no grupo é de 2 filhos por mulher, sendo que a maior parte tem os filhos a estudar, excepto aquelas cujos filhos deviam estar na Universidade, que por falta de dinheiro não se encontravam matriculados, naltura. O nível de escolaridade varia entre a 2.ª classe e o ensino médio (12.ª classe), tendo havido duas mulheres que se declararam analfabetas pelo facto de os pais não terem permitido que estudassem. Destas 5 declararam viver com marido, 4 declararam-se separadas, uma viúva e uma solteira.

O grupo era constituído por vendedoras de água engarrafada e gasosas, vendedoras de calçados novos e sapatos do fardo, vendedoras de latarias e hortaliças (tomate pelado, atum, sardinha, legumes, massa de tomate etc), vendedoras de fraldas descartáveis e vendedoras de bolinhos, jinguba e quiçângua. Para melhor compreensão agrupamos as mulheres por actividades económica e procuramos saber quanto rende, quem administra, como gasta e a extensão do agregado.

Ilustração 9: Vendedora de rua

Foto: Iselin Åsedotter Strønen

As vendedoras de calçados novos (2) conseguem entre 5 – 15 mil/ mês de lucro, como era duas, uma revelou receber entre 5 – 10 mil kwanzas / mês de ajuda da filha que é professora e outra disse receber entre 2 – 5 mil kwanzas / ano de ajuda de um irmão. As próprias administram o dinheiro para os gastos correntes e investimento no negócio, o dinheiro é gasto da seguinte maneira: mil a mil e 500 kwanzas/ dia para comprar comida (pequeno-almoço, almoço e jantar); 100 – 500 kwanzas / de dois em dois dias para a compra de água para consumo; 2 mil – 4 mil kwanzas para a compra de roupa (de vez em quando ou 1 – 2 vezes por ano: no natal e antes do início das aulas) e saúde sendo até 15 mil kwanzas por cada vez que adoece alguém. Sendo que a média é de 20 vezes por ano haver necessidade de ir ao hospital, ou seja, em média 1– 2 pessoas adoecem em cada mês, sendo muito comum serem febres, paludismo e para algumas mulheres dores fortes nas articulações, especialmente na zona das pernas.

A vendedora de gasosas e água engarrafada (1) conseguem um retorno de até 5 mil/ mês em 15 embalagens de 12 gasosas, vendendo cada gasosa entre 100 – 150 (cem acento e cinquenta kwanzas), recebe uma contribuição de 15 mil/ mês do marido e mais ou menos 8 mil kwanzas das filhas que fazem algum negócio ou trabalham, ela própria administra o dinheiro, poupando 5 mil kwanzas por mês: 15 mil kwanzas para comprar comida (compra a grosso: arroz, óleo e uma caixa de frango outros produtos alimentares vai comprado diariamente com algum dinheiro do seu negócio); a escola das crianças fica a cargo do pai; gasta entre 300 – 500 kwanzas em roupa do fardo para as crianças (quando vai comprar o jantar na praça, se encontra fardo bom e barato a esse preço, compra); todos os dias gastas 100,00 kwanzas em água para casa; e quando alguém adoece o pai encarrega-se dos gastos, normalmente o custo com a saúde cobre exames e medicamentos, sendo as consultas grátis nos hospitais públicos. Em média uma vez por mês entre 1-2 pessoas em casa adoecem, resultando numa média de 15 idas ao hospital/ ano. Tem no agregado 6 pessoas e vive maritalmente.

A vendedora de sapatos do fardo (1). Tem um rendimento mensal de até 10 mil kwanzas/ mês (entretanto contrastando essa informação com outras vendedoras do mesmo produto é possível verificar que, dependendo do sítio onde se vende, o lucro mensal pode ser de ate 70 mil kwanzas) e muitas vezes recorre ao empréstimo para suprir todas as necessidades. Quanto aos gastos mil e 800 kwanzas – 2 mil kwanzas /dia para comprar comida (pequeno-almoço e jantar); 6 – 20 mil kwanzas /mês com a saúde (disse ter filhos ainda pequenos que mensalmente têm febres, 8 mil para pagar a renda da casa; mil e 500 kwanzas para pagar a explicação de um dos filhos que não conseguiu matricular na escola pública; 500 kwanzas mês para pagar na Escola do Estado (quando questionada sobre pagamento, pois o ensino público deve ser gratuito, não soube dar uma explicação clara, apenas que o professor pede ao filho, provavelmente para comprar algum tipo de material); 100,00 kwanzas/dia para água, mas quando falta água o bidon de 25 litros custa 50,00 kwanzas e 8 – 10 mil kwanzas /ano para a compra de roupa para as crianças. Não tem marido e o seu agregado é de 4 pessoas.

Vendedoras de fraldas descartáveis (2), uma tem marido, outra é solteira e sem filho. A que tem marido possui um agregado de seis pessoas. Do negócio ambas conseguem entre 3 mil – 6 mil e 500 kwanzas /dia acrescida de uma ajuda familiar de 10 – 20 mil kwanzas / ano. O dinheiro é administrado pelas próprias, dessa quantia: 2 mil kwanzas /dia é para comprar a comida, sendo que nesse agregado a quantidade de refeições reduziu para duas, havendo dias em que as possibilidades melhoras e a família faz três refeições, no principio do ano recebeu uma contribuição do marido de 70 mil kwanzas para matricular os filhos na escola pública e comprar material escolar; quanto à saúde referiu que adoece-se pouco em sua casa e que por isso o gasto é de em média 15 mil kwanzas /ano (equivalente a uma vez que vai ao hospital).

Vendedoras de latarias (2) ambas têm marido. Uma tem um agregado de 6 pessoas e outra de 5 pessoas. Revelaram conseguir entre 2 – 5 mil kwanzas/ semana de lucro; 20-40 mil de contribuição dos maridos e 5-10 mil kwanzas de ajuda familiar. O dinheiro é administrado pelas próprias. Do que conseguem gastam em: comida 1800 kwanzas/dia, para comprar acompanhamentos (peixe, frango, tomate, cebola, alho etc), porque parte do dinheiro que recebem dos maridos compram comida a grosso ( geralmente: saco de arroz, caixa de massa, caixa de óleo e caixa de coxa ou frango): 200 kwanzas /dia para água (uma das mulheres revelou que por ter criança em casa gasta em média 500/semana em água mineral para o consumo da criança), mil e 800 kwanzas /dia-taxi para os filhos que estudam distante; 4 mil kwanzas/mês de propina (em média 2 – 3 crianças, dependendo do nível) e 25 mil de 2 em 2 meses.

Vendedoras de bolinho, jinguba e quissangua (3): conseguem 3 mil kwanzas/dia e os maridos contribuem com cerca de 2 mil kwanzas /dia. A administração é feita por cada uma delas. Desse dinheiro: mil e 500 kwanzas poupa para manter o negócio; 300 – 400 kwanzas /dia para comprar água; mil e 500 kwanzas/dia para comprar comida; 10 mil kwanzas/mês para propinas e mil e 200 kwanzas/dia para táxi dos filhos que estudam distante.

As mulheres revelam que não conseguem fazer poupança, que a quantidade de refeições por agregado diminuiu em média para 2 refeições por dia, geralmente o pequeno almoço e o jantar, havendo casos em que, as famílias ficam sem comida para alimentar-se ou, em caso de alguma fartura, fazem as três refeições todos os dias. Geralmente para as mulheres que tem marido, a contribuição deste é destinada a gastos como comida a grosso, poupança para o negócio ou até investimento em obras na residência.

Ilustração 10: Exemplo de luta diária pela sobrevivência

Foto: Iselin Åsedotter Strønen

Para estas mulheres a vida está difícil. No grupo, a maioria tem os maridos desempregados ou com ocupações precárias. Aquelas cujos maridos trabalham ou recebem alguma pensão pelo Estado reclamaram dos atrasos e como isso agrava a condição social das famílias, uma referiu que a sua condição familiar agravou desde que o marido contraiu um crédito e desde então parte do seu rendimento serve para amortizar a dívida. Todas concordam que o negócio mais rentável é vender comida crua, “porque as pessoas têm de comer todos os dias”, disseram.

As mulheres mostram maior capacidade de adaptação pelo facto de transitarem com uma certa perícia entre os negócios. Assim é importante referir que nem sempre a condição de vendedora significa obtenção de rendimentos baixos. No âmbito da informalidade é importante diferenciar a pequena informalidade, da grande informalidade, em razão dos rendimentos obtidos. Para significar que há um leque de negócios que permite a obtenção de lucros diários ou mensais acima de 10 mil ou 100 mil kwanzas, permitindo a obtenção e, em geral acumulação, de quantia considerável. Geralmente, quem se encontra na grande informalidade facilmente transitam para o empresariado, beneficiando de um regime de investimento e poupança mais elevado e, de certa forma, mais seguro.

Caso n.º 2

Noriana tem 26 anos, é solteira sem filhos e vive com mais 2 irmãos seus mais velhos. Nasceu no Congo, filha de congolês e angolana. Estudou até ao ensino médio no Congo.

Há 13 anos que vende cuecas para não se prostituir, diz ela. Parte do dinheiro faz poupança e outra parte paga a renda da casa e a comida de casa. Se por dia vende até 5 mil, retira mil kwanzas para fazer as refeições e 4 mil kwanzas para guardar. A renda custa 60 mil kwanzas/ ano, sendo 5 mil kwanzas / mês. O custo do seu negócio varia entre 30 – 50 mil kwanzas/ mês e o lucro entre 30 e 40 mil kwanzas por semana. Os irmãos não estudam nem trabalham, mas estudaram igualmente até ao ensino médio.

Quanto ao custo de vida parece estar difícil, tendo confidenciado que em Janeiro deste ano algumas vezes não conseguiu comprar comida.

 

Um outro caso mostra que o comércio informal pode ser bastante lucrativo e possibilitar, também, que as mulheres ajudem a financiar outras necessidades familiares além da sua, criando um certo sistema de apoio familiar.

Caso n.º 3

Catarina é solteira, não tem filhos, veio do Congo, tem 31 anos de idade, tem o ensino médio concluído e vive com um tio. A vendedora de bijuterias (relógios, brincos e outros), há cerca de 11 anos, investiu 50 mil kwanzas e tem um facturaçao diária entre 15-20 mil kwanzas. Desse dinheiro guarda algum, faz Kixiquila de 5 mil kwanzas por semana entre 15 pessoas e consegue um lucro mensal de mais ou menos 20 mil kwanzas. Envia 50 – 100 mil kwanzas para ajudar os familiares no Congo.

Há ainda diferença de rendimento entre os homens e as mulheres que vendem. Nas entrevistas colectivas foi possível perceber que se deve ao facto, segundo o grupo, primeiro, de os homens de dedicarem a negócios que permitem um maior retorno financeiro, e segundo, ao facto de o seu rendimento não ser destinado as despesas correntes. Uma terceira razão, mas que não é exclusiva dos homens, pode ser o facto de os vendedores de mercado se dedicarem a kixikila, funciona na base da confiança e consiste na atribuição diária, semanal ou mensal de um valor fixo (geralmente não muito elevado) entre um certo número de contribuintes, em que cada um recebe a totalidade do valor por vez (dia/semana ou mês).

A kixiquila que consiste em um sistema popular e informal de reciprocidade, ou seja, de empréstimos recíprocos de uma quantia prefixada de dinheiro entre os kixiquilantes, que se obrigam a entregar a devida quantia num prazo fixado, com o direito de findo determinado ciclo, cada um, por vez, obter a soma da quantia acordada. Esta espécie de associação mutualista permite acumular rendimento, fazer poupança e investir em áreas como melhoria da habitação familiar, compra de bens duradouros como eletrodoméstico, investimento com a educação, geralmente universidade, e até, maior investimento no negócio.

A kixikila é um sistema de entreajuda muito comum entre vendedores e pessoas com baixo rendimento[35] e tem permitido à essas pessoas fazer poupança e/ou investimentos, designadamente: construir ou melhorar as condições da moradia, comprar móveis, eletrodomésticos, carro ou investir em um negócio mais lucrativo.

Algumas mulheres referiram que continuam a fazer recurso a kixilila para poupar ou investir em projectos familiares, outras afirmaram que deixaram de participar do sistema pelo facto de estar a registar uma diminuição nas vendas e na obtenção de rendimento. Outras ainda referiram que deixaram de vender, por falta de clientes e de dinheiro para voltar a investir. Para estas a solução tem sido depender do marido, da familiar ou da ajuda, muito esporádica, dos vizinhos.

Uma antiga empregada doméstica disse que sempre optou pela kixiquila para cobrir as despesas pessoais e familiares ao longo do período de e pós-parto, pelo facto que não haver a cultura do pagamento da licença de maternidade das empregadas domésticas. Outra mulher testemunhou que o “dinheiro da kixiquila serve para poupar e algumas vezes para questões pessoais”. Geralmente quando esta com dificuldades recorre a irmã que ajuda geralmente com até 2 mil kwanzas.

O desemprego dos homens também teve um impacto no emprego das mulheres. Alguns foram os relatos de mulheres que voltaram a zunga, venda informal ou biscates como engomadeira e empegada doméstica por ser a única possibilidade de obtenção de renda para as despesas familiares.

Caso n.º 4

Filomena tem 44 anos, vive com marido, estudou até a 6.ª classe feita, é vendedora de cremes e outros produtos para o cabelo e material escolar (devido a época pré-escolar), tem 8 filhos, sendo que um não está a estudar por falta de dinheiro para o colocar na Faculdade. Já foi empregada doméstica.

A sua jornada de trabalho inicia as 7h30-18 ou 19 horas /dias com excepção de domingo e mais algum dia da semana que vai à Igreja. Investiu 40 mil kwanzas, obtém um rendimento que varia entre os 5- 15 mil kwanzas /dia. Faz kixiquila de mil kwanzas / dia e cada um recebe no final de 3 dias, o ciclo tem um total de 25 pessoas.

Parte do dinheiro do negócio paga a propina de 4 filhos, num total de 30 mil kwanzas/mês os outros três estudam no Estado. No principio do ano efectua um gasto de até 55 mil kwanzas em material escolar, preço que considera razoável pois compra em grandes quantidades e em locais mais baratos (armazéns). Outra parte do dinheiro é para a comida: mil kwanzas para o pequeno-almoço, 3 mil kwanzas para o jantar e 500 kwanzas para o peixe do almoço (sardinha).

O marido está desempregado e de quando em vez pede dinheiro para ir passear.

Nota-se claramente, nos casos apresentados, que a mulheres direccionam todos os rendimentos que obtém à satisfação das necessidades familiares. Por este facto, as suas actividades podem ser categorizadas como estando inseridas na “economia informal de sobrevivência - actividades orientadas para a geração dos rendimentos indispensáveis à sobrevivência dos actores e dos respectivos agregados familiares (inclui a produção de bens e a prestação de serviços, nomeadamente o micro e o pequeno comércio retalhista, os serviços de reparação e manutenção, os serviços financeiros, os serviços pessoais e os serviços associados ao lazer e entretenimento; regra geral, são actividades que se realizam a uma escala reduzida no quadro dos processos de adaptação realizados pelos agentes económicos desprovidos de recursos às condições ambientais que os envolvem e que determinam as suas práticas)” (Lopes, 2014, p. 7).

2.4  As relações de género nos bairros de Luanda

A divisão sexual do trabalho é encarada na literatura como um elemento-chave nos estudos de género, pois permite conhecer não apenas os limites entre público e privado, nas relações entre homem e mulher, mas também compreender as dinâmicas de poder, fragilidades e relações de força entre ambos. Apesar de ser cada vez mais evidente o relaxamento da fronteira entre o mundo produtivo e o reprodutivo, as responsabilidades domésticas continuam a ser predominantemente atribuídas às mulheres. Assim, essa revolução incompleta das mulheres, potenciou e aumentou a participação feminina na esfera produtiva, mas não aumentou a participação e responsabilização masculina no trabalho doméstico (Sousa e Guedes, 2016, p. 125).

Nos espaços da pesquisa há uma forte consciência da divisão sexual do trabalho. Os papeis das mulheres e dos homens para as tarefas reprodutivas e produtivas, ou de tarefas domésticas e trabalho produtivo são definidos com clareza. O espaço doméstico é encarado como um espaço de excelência da mulher, ao homem é permitido auxiliar, mas não entra no leque das suas obrigações pessoais para com a família. Seja porque as mulheres não acham correcto ou respeitoso envolvê-los nas tarefas domésticas ou pelo facto de os próprios homens não considerarem adequado e igualmente respeitoso (Strønen e Nangacovie, 2016, p.3).

Em alguns momentos foi possível captar um senso mais indiferenciado sobre as tarefas domésticas para homens e mulheres. Mas atribuição específica das mesmas por cada um, já havia uma clara atribuição de mais tarefas domésticas para as mulheres em detrimento dos homens. Os próprios homens ao referirem-se ao trabalho doméstico, selecionavam actividades que se entendem por menos tipicamente femininas, como se pode notar as pintadas em azul, na tabela abaixo.

Tabela n.º 21 Divisão de tarefas por género

Trabalho doméstico

Ocupação social e Rendimento

Homem

 Mulher

Mulher

Homem

Limpar o pó

Cozinhar

Vendedoras (zungueiras e de mercados)

2-10 mil kwanzas/mês

Vendedores de Mercado

10-13 mil kwanzas /semana

Arrumar a casa

Lavar

Trabalhadoras domésticas

20-30 mil kwanzas/mês

Taxistas

20-60 mil kwanzas/mês

Acarretar água

Arrumar a casa

Professoras

10-65 mil kwanzas/mês

Pedreiros[36]

30-60 mil kwanzas/mês

Reparar a luz e todos os electromésticos avariados

Cuidar das crianças

Enfermeiras

10-65 mil kwanzas/mês

Serralheiros

30-80 mil kwanzas/mês

Inspecionar se existe comida, gás etc. em casa

Engomar

Pequenas comerciantes (donas de cantinas/lojistas)

5-10 mil kwanzas/mês

Professores

10-65 mil kwanzas/mês

Engomar

Levar as crianças a escola

Donas de salão de beleza

2-15 mil kwanzas/mês

Eletricista

5-60 mil kwanzas/mês

 

Ir ao mercado comprar comida

 

Enfermeiros 10-65mil kwanzas/mês

 

Servir a comida

 

Mecânicos

30-80 mil kwanzas/mês

Fonte: CEIC-CMI, a partir de dados recolhidos no terreno através do exercício Divisão de Tarefas, com um grupo focal de mulheres e homens, durante a pesquisa de campo, no Paraíso.

A consciência sobre a responsabilização dos pares para com o trabalho doméstico é fortemente guiada por regras culturais tradicionais, o que acaba por determinar o que é trabalho tipicamente feminino e o que é trabalho tipicamente masculino. Sendo que, o ponto de partida do mesmo pensamento assenta na ideia de que o trabalho doméstico é trabalho essencialmente feminino, embora admita a possibilidade de serem atribuídas certas tarefas domésticas aos homens, como forma de ajudar às mulheres. Por aqui, temos a considerar duas hipóteses. A primeira é a de que o que se declara pode não corresponder à realidade, ou seja, o que as pessoas dizem pode ser diferente da prática quotidiana. A segunda é que, existe um conflito ideológico[37] em considerar que as responsabilidades da mulher e do homem devem corresponder ao sexo, embora o género não determina todos os limites, pois podem existir homens que gostem de cozinhar ou limpar o pó da casa.

Mas as regras de certo e errado, com consequências evidentes sobre o que é bom ou mau, permito ou proibido dentro das relações entre os géneros estão bastante alicerçadas nessa crença, o que favorece o clima de tensão e, por vezes, até de conflitos entre em muitos agregados.

Em um grupo focal, no Wenji Maka II, com 11 mulheres procurou-se perceber como as mesmas percebem a divisão do trabalho entre homens e mulheres. O grupo era diversificado, as participantes tinham idades compreendidas entre os 28, e 59 anos. Quanto ao estado civil, seis declararam-se casadas. Duas vivem maritalmente com os seus parceiros e as outras três são solteiras. Das 11, apenas uma tem um emprego formal, como funcionário de limpeza de um posto privado de distribuição de eletricidade do bairro. Seis declararam-se domésticas, três disseram ser vendedoras, uma à porta de casa, outra no mercado informal e a terceira como zungueira. A excepção de uma que reside há cerca de seis meses no bairro, as demais vivem há mais de um ano. A mais nova residente está há um ano e a mais antiga desde a fundação do bairro, 2002. Quanto ao nível académico, varia entre o ensino primário até ao universitário, no grupo uma das mulheres era licenciada em Direito, mas não exercia nenhuma profissão relacionada, por razoes pessoais. A média de filhos no grupo era de quatro por mulher.

Da discussão resultou a seguinte identificação das profissões e rendimentos por género:

Tabela n.º 22 Divisão de Tarefas por Género

Trabalho Doméstico

Ocupação Social

Rendimento

Homem

Mulher

Mulher

Homem

Mulher

Homem

Acarretar água

Lavar

Funcionária de limpeza

Mecânicos

Médicas

200 + mil kwanzas

Médicos

 200 + mil kwanzas

Cozinhar às vezes

Engomar

Zungueira

Taxistas

Professoras

20-120 mil kwanzas

Enfermeiros

80 + mil kwanzas

Ajudar a mulher

Arrumar a casa

Funcionária doméstica

Pedreiros

Farmacêuticas

30-70 mil kwanzas

Farmacêuticos

30-70 mil kwanzas

Tudo o que a mulher faz

Cuidar das crianças

Professora

Eletricistas

Zungueiras

20-60 mil kwanzas

Mecânico

80-200 mil kwanzas

 

Cozinhar

Medicas tradicionais

Bate-Chapa

Funcionária doméstica

25-40 mil kwanzas

Eletricista

80 + mil kwanzas

 

 

Farmacêuticas

Professores

Funcionária de Limpeza

25-80 mil kwanzas

Bate-chapa

20-80 mil kwanzas

 

 

Engenheiras, médicas e advogadas

Médicos tradicionais

Médica Tradicional

Professores

25-100 mil kwanzas

 

 

 

Enfermeiros

 

Taxista

50+ mil kwanzas

 

 

 

Farmacêuticos

 

Pedreiro

50+ mil kwanzas

 

 

 

Zungueiros

 

Médico Tradicional

60 mil kwanzas

 

 

 

 

Médicos

 

Zungueiro

20 mil kwanzas

Fonte: CEIC-CMI, a partir de dados recolhidos no terreno através do exercício Divisão de Tarefas, com um grupo focal de mulheres e homens, durante a pesquisa de campo, no Wenji Maka II.

A discussão centrou-se na divisão do trabalho domésticos e nas principais ocupações sociais para homens e mulheres do bairro. As participantes consideraram que é dever da mulher realizar todas as tarefas domésticas, tudo o que é necessário em casa. Ao homem cabe ajudar, mas nunca pode uma mulher indicar ao homem/marido quais são as suas obrigações domésticas. Para algumas isso seria um desrespeito ao homem, uma atitude pouco correcta da mulher. No entanto, duas testemunharam que os seus companheiros realizam actividades domésticas, como engomar, cozinhar, fazer compras, arrumar etc., mas esses homens são algumas vezes, criticados por familiares e vizinhos.

As mulheres reclamaram falta de recursos financeiros para continuar com os estudos, no grupo, pelo menos, duas declararam que suspenderam os estudos por falta de dinheiro. Segundo contaram, as profissões mais comuns para mulheres sem marido são: zungueiras, vendedora à porta de casa e funcionária/empregada doméstica.

Segundo o grupo, é muito comum os homens gastarem mais dinheiro no convívio com os amigos, comprando cerveja etc.

Para o grupo, as mulheres podem fazer tudo o que os homens fazem, mas que devido à crise actual, muitas mulheres e homens estão sem emprego, o que as obriga a partirem para ocupações como vendedoras e zungueiras. Para algumas mulheres, zungueiro não é um trabalho digno para homens.

As mulheres, seja esposa seja filha, dedicam grande parte do seu tempo a limpar a casa, acarretar água, varrer o quintal, lavar a roupa, cuidar das crianças, cozinhar e fazer a compra dos bens de consumo. Mais de 60% dos respondentes afirma que estas são tarefas que devem ser executadas pelas mulheres do agregado. Em média, menos de 3% dos respondentes respondeu positivamente a atribuição das mesmas tarefas aos rapazes do agregado. Se considerarmos, as responsabilidades do CAF, em média 6% considerou que o mesmo pode também executar as tarefas descritas acima.

Gráfico n.º 5

Fonte: CEIC-CMI, a partir dos dados do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

As actividades domésticas são atribuídas as mulheres com fundamento nos vínculos do casamento, ligações parentais, costumes tradicionais e práticas alicerçadas em determinadas culturas. Seja a mulher considerada cuidadora, sensível ou mais sentimental e o homem provedor, macho, viril ou racional, as fragilidades e dificuldades da pobreza vem demostrando que há uma certa conveniência e comodidade masculina ao aceitar o sustento da mulher, em cenário de desemprego e falta de rendimentos, mas rejeitar assumir as suas responsabilidades no trabalho doméstico e no cuidado com os filhos. As tarefas domésticas têm efeitos e impacto na saúde da mulher. Muitos foram os relatos de mal-estar crónico devido a dores no corpo, sendo que algumas mulheres especificaram dores constantes na coluna, cabeça, pulsos e pernas, que podem estar associadas ao facto de acarretarem água, lavarem a roupa à mão, ou até limparem o chão de joelhos.

Apesar de as qualidades não possuírem uma relação intrínseca com um género especifico, mais de 35% dos inquiridos considera que as mulheres devem ser responsáveis por cuidar de alguém que esteja doente no agregado, ao passo que mais de 65% entende que o CAF deve pagar pelo tratamento.

Gráfico n.º 6

Fonte: CEIC-CMI, a partir dos dados do Inquérito sobre a Realidade das Comunidades, 2016 e 2017.

Para uma melhor percepção das dinâmicas de relação entre homens e mulheres, é importante referir que a vida e condição das mulheres é diferente conforme se trate de uma mulher com marido, solteira ou viúva. Embora a presença de um homem por si só não signifique vida melhor, a pesquisa verificou que as mulheres casadas (incluindo as que vivem maritalmente), cujos maridos possuem emprego ou tenham uma renda fixa, conseguem ao menos financiar melhor o orçamento doméstico.

Este comportamento contribui para que os homens ganhem uma representação simbólica de poder, que não é igualmente atribuído às mulheres. Seja nas vestes de marido, filho ou irmão, os homens ocupam um lugar privilegiado e as mulheres lhes devem respeito, obediência e serventia. Mesmo naqueles casos em que a mulher soprta sozinha as despesas familiares ou toma as principais decisões, não detém o poder simbólico. E essa percepção é tão destituinte, como se fosse real e efectiva fosse.

Dependendo da capacidade de negociação das mulheres, a realidade mostra que os homens não querem perder esse poder por nada. Acomodados na conveniência, muitos homens justificam actos de abusos e até de violência em factos como a demora da mulher nas compras ou até por um pedido da mulher para executar uma tarefa doméstica.

Em um grupo de discussão sobre a divisão de tarefas, as mulheres foram relutantes em admitir que rapazes e raparigas devem executar as mesmas tarefas domésticas, reforçando a visão conservadora da divisão sexual do trabalho. Admitindo assim que, embora possam fazer trabalho doméstico, os rapazes não são sujeitos as mesmas actividades que as meninas.

As lutas femeninas são constantes e pelo menos, ao longo da pesquisa, ficou conhecido um caso, em que um grupo de mulheres se juntou para reivindicar àgua ao domicílio. O movimento, dessas mulheres, é uma referência de “luta e vitória” (parafraseando uma moradora) no Kalawenda, como exemplo que os problemas são, também, instrumentos de exercício da cidadania.

Caso n.º 5

Branca da Conceição

Em 2013-2014 um grupo de cerca de 160 mulheres, do Kalawenda, município do Cazenga, lideradas por Branca da Conceição, caminhou a pé até a Administração Municipal do Cazenga reclamando por instalação de água potável nas suas residências.

A manifestação foi motivada pelo facto de em um dos bairros limítrofes haviam sido colocados chafarizes, deixando de fora o Kalawenda. As mulheres que acarretam a água tinham de percorrer grandes distâncias ou pagar muito caro. Assim, um grupo de mulheres decidiu manifestar-se reclamando também por chafarizes. A marcha levo-as à Administração do Cazenga, que resolveu a situação em 2015.

Branca da Conceição é uma mulher com mais de 50 anos, coordenadora da área A do sector 37 A do Kalawenda. A sua influência é grande e reconhecida pelos moradores, chegando alguns a tratá-la por “Mamã Branca”. No caso, Branca da Conceição desafiou o seu tempo e o seu contexto.

Aos 50 anos, as mulheres mais velhas, no contexto de Angola e dos bairros periféricos, também tratadas por avós, costumam ter um espaço mais reservado ao domicílio e ao trabalho residual, nas tarefas domésticas, assumindo o papel de anciã e de reserva moral da família. O activismo político é um comportamento atribuído e reconhecido aos mais jovens. Mas, Branca da Conceição prova que a cidadania não tem idade, limites ou género, apenas sujeitos.

 

3. A violência contra a mulher

Neste terceiro capítulo abordamos a questão da violência contra a mulher, nomeadamente (3.1.) a violência doméstica, (3.2.) a violência sexual e (3.3.) a violência contra as vendedoras.

A violência é um tema quase silenciado, nota-se uma certa resistência em abordá-lo de forma pública e livre. Entretanto, quando referido, nota-se que é uma experiência comum entre várias mulheres (Strønen e Nangacovie, 2016, p. 2). Existem diferentes tipos de violência contra a mulher, pelo que, é possível identificar a violência doméstica, os crimes violentos (violações sexuais e agressões físicas).

3.1  A violência doméstica contra a mulher

O país não têm uma boa situação de Direitos Humanos e, segundo o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, os direitos das mulheres são os mais violados, tendo em contra o registo elevado de casos de violência doméstica, que em 2016 foram 62 mil casos, numa média de 170 registo por dia[38]. Nos espaços da pesquisa, e apesar de as instituições municipais e comunais terem referido apenas 1-2 casos por mês, a colocação do assunto nos grupos de discussão, deu a entender que o tema é assumido como um facto normal e/ou corrente da vida do casal (Strønen e Nangacovie, 2016, pp. 2-3).

A violência, entendida como qualquer acçao de agressão contra alguém, é um fenómeno complexo e de causas diversas, o exercício que se procurou fazer foi o de captar a percepção das próprias mulheres, enquanto vítimas, uma vez que a “forma como uma experiencia é percebida, tem relação com a maneira como é sentida ou identificada” (Guimarães e Pedroza, 2015, p. 259). A notada normalização da violência, pelas mulheres, sugere também aceitação, pelas mesmas, como um facto comum, por um lado, e por outro, como um facto justificável.

A violência doméstica é definida como aquela que se dá no espaço intra-familiar, sem com isso, esgotar todos os seus limites (geográfico e simbólico). O mesmo é referir que, a violência doméstica apesar de ser maioritariamente contra a mulher, não é exclusivamente praticada pelos homens, nem é unicamente dirigida contra as mulheres. Ela pode também ser praticada por mulheres e contra outros membros da família e pessoas dependentes do agregado, como sejam empregados.

Caso n.º 6

Mariana tem 40 anos, estudou até a 9.ª classe, tem 6 filhos. Destes, um não estuda e iniciou-se como ajudante de construção civil, é viúva e trabalhou como empregada doméstica. N’altura da entrevista tinha sido despedida pelo facto de se ter encontrado doente.

Até ao momento, em que falámos, disse que trabalhara em 5 casas, sendo que em uma delas a dona era de nacionalidade portuguesa e as demais de nacionalidade angolana. Ganhava entre 30 – 35 mil kwanzas. Confessou que destas experiências, a que melhor a tratou foi a patroa de nacionalidade portuguesa, que a concedia períodos de licença quando se encontrasse doente, prestava o salário adiantado, em caso de necessidade, doava roupa, material escolar e outros bens para si e para os seus filhos. Já com as patroas angolanas, a experiência que tem é de ter sido maltratada, casas haviam em que não lhe era permitido comer, e quando se encontra doente era “coagida” a trabalhar sob pena de perder o emprego.

O seu horário de trabalho costumava ser o das 08 – 16h, de segunda ao sábado, havendo casas em que tinha direito a dois dias de folga. Entretanto, informou que quando tinha apenas um dia folga era mais difícil para ela pelo facto de não conseguir organizar ela mesma a sua casa, ou seja, realizar as tarefas de limpeza e asseio como desejava e ficava bastante cansada.

Enquanto empregada doméstica nunca beneficiou de férias ou licença de maternidade.

A violência doméstica tende a ser explicada sob a óptica do poder e na desigualdade nos papéis de homem/ mulher ou esposo/esposa ou pai e mãe. Para Heleith Saffioti, a prática de agressões por mulheres pode compreender-se no facto de as mesmas “aprenderem a ser prepotentes em relação aos que detém menores fatias de poder diante dela” (Saffioti, 2001, p. 3). Mas não se trata apenas de agressão psicológica sobre as empregadas domésticas, no caso referido, trata-se também da negação de um conjunto de condições e direitos, decorrentes da sua condição de trabalhadora. Antes da aprovação do Decreto Presidencial 155/16 de 9 de Agosto de 2016, ao trabalho doméstico era atribuído um valor marginal e informal. Actualmente, esse trabalho é considerado trabalho formal com toda a protecção daí decorrente, como seja a garantia da liberdade da trabalhadora, o direito à férias e a remuneração das mesmas, o direito à licença por doença ou maternidade; o direito ao pagamento das prestações da segurança social.

Uma mulher, no Wenji Maka II, contou que fora agredida fisicamente, pelo marido, duas vezes. A primeira vez deveu-se ao facto de se ter demorado no mercado/praça, onde fora comprar alimentos para as refeições daquele dia, e, a segunda vez, por não ter servido a comida ao marido quando este pediu. Entretanto, segundo a mesma, o almoço ainda não estava pronto. Apesar da violência, não apresentou queixa à polícia ou à Comissão de Moradores.

O predomínio das agressões sobre as mulheres também pode ser justificado pelo facto de “a vida rotineira das pessoas ser permeada por relações assimétricas de poder entre mulher e homem” (Bandeira, 2014, p. 451). Portanto, o patriarcado não estrutura apenas as relações familiares, pelo contrário, apresenta-se como um sistema sociopolítico, que define relações sociais, sujeitos políticos, subjetividades e identidades (Saffioti, 2001).

A violência praticada, no lar, é não é apenas física, pode ser também psicológica ou patrimonial. Ao tornar crime público, Lei n.º 25/11 de 14 de Julho de 2011, Lei contra a Violência Doméstica, retira do espaço doméstico uma prática que era justificada como um assunto privado. Essa medida, além de encarar a violência, nas suas múltiplas formas, como seja: física, verbal, patrimonial etc., é o reconhecimento da gravidade de tais actos e da necessidade de protecção das vítimas, pelo Estado.

Entretanto, os recursos para o seu enfrentamento não estão disponibilizados em quantidade e qualidade acessíveis para todos, especialmente na periferia. Segundo o coordenador da Comissão de Moradores do Wenji Maka II, “há registos de alguns casos que estão sob o domínio da comissão. A falta de condições financeiras é apontada como sendo a principal causa, além de outros problemas conjugais. Entretanto, não tem havido um acompanhamento dos mesmos, pois limitamo-nos a encaminha-los para a polícia e outras entidades”. No paraíso o cenário parece semelhante. Segundo o relato de uma moradora “Homens batem nas mulheres. Talvez porque (ela) não fez almoço ou jantar, mas é porque o homem não deixou dinheiro para comprar comida”.

A violência física justificada na violação de deveres e obrigações conjugais pelas mulheres é um recurso frequente e comum dos homens. Nesta forma, torna-se em mais um lugar comum do patriarcado. Como muito bem assinala a doutrina “o conceito de “violência contra a mulher” não significa uma simples oposição a “violência contra o homem” – expressão que soa estranha justamente por não se querer estabelecer polos. Ao se falar em “violência contra a mulher” pretende-se, na realidade, remeter às relações patriarcais de gênero e a desproporcionalidade que elas estabelecem na relação de convívio, identidade e sexualidade entre os sexos” (Cunha, 2014, p. 150).

Há desafios a enfrentar, como seja o de capacitar as instituições a adoptarem os padrões indicados para o combate à violência. Em alguns depoimentos foram relatados procedimentos incomuns (à luz da lei), como seja, para a polícia, o de aconselhar a mulher a não mais prevaricar, ou ao marido a cumprir com as sus obrigações de provedor, ao invés de instrução de um processo crime. 

A instituição mais referida para apresentar a queixa é a polícia. Entretanto, no Paraíso e no Kalawenda as estruturas policiais, além de precárias, estão colocadas em pontos distantes das comunidades, dificuldade o acesso e a pronta resposta.

3.2      A violência sexual contra a mulher

A violência sexual tem, várias vezes, feito as manchetes dos jornais, rádios e televisões, nomeadamente quando são agredidas mulheres com algum destaque social ou é dirigida contra menores.

No Wenji Maka II, no Kalawenda e no Paraíso foram referidas, reiteradas vezes, casos de violência sexual. Neste último bairro, diz-se que as situações são muito frequentes, geralmente à noite, mais ou menos 1- 2 casos por semana. Assim como as outras formas de violência, a sexual não é recente, mas é cada vez mais pública a sua denúncia, criando, de certa forma, uma percepção de novidade. As maiores dificuldades que se encontram têm que ver com os mecanismos de protecção das mulheres e responsabilização dos agressores. No Kalawenda uma mulher contou que “não temos conhecimento de muitos casos. Temos ouvido algumas histórias de violação sexual, mas não é muito. Por semana uma vez”.

A violência sexual mais denunciada tem sido a praticada no seio familiar, geralmente por um membro masculino do agregado. Mas além desta, existe também a que é praticada fora do agregado por elementos masculinos estranhos ao agregado.

Nos casos relatados não foi possível fazer uma clara distinção das situações. Entretanto, o mais revelador é que nenhuma acção de responsabilização foi citada, o que pode sugerir que prevalece uma certa impunidade dos agressores. Seja por descaso das autoridades, motivado por não se proceder a queixa particular ou por ausência de meios nas instituições de combate à prática, a falta de acção não deixa de ser entendida como falhas na protecção às vítimas, não apenas da sua honra como também da sua dignidade e integridade.

3.3      A violência contra a mulher vendedora

O local de trabalho é também um espaço de violência contra as mulheres, sobretudo para àquelas que efectuam actividades económicas no sector informal, como seja a venda (ambulante ou com posto fixo). Portanto, a noção de trabalho aqui assumida é a equivalente a actividade de vender bens ou prestar serviços, nos mercados ou praças informais, situados nos espaços da pesquisa, mas não autorizados, uma vez que, existem outros mercados informais, autorizados pela Administração do Estado, onde a acção fiscalizadora é realizada em moldes diferentes, geralmente sem recurso a violência ou apreensão de mercadorias.

A actividade de zunga ou de venda ambulante e venda com posto fixo são práticas antigas e comuns em Luanda. Há, entre os vendedores, um segmento específico, que prefere vender os seus bens circulando ao pé, em uma zona determinada do mercado informal ou da cidade, no caso de serem mulheres – são chamadas de zungueiras. É mais comum encontrar-se mulheres, na zunga, em detrimento dos homens, talvez pelo facto de que “a falta de oportunidades no acesso a educação e a formação profissional, aliada a feminização da pobreza” crie maiores possibilidades para as mulheres optarem pela economia informal (OIT, 2018). A prática da venda informal, em posto fixo ou na zunga, remonta ao período colonial e tem sido justificada tanto para a busca de clientes como pela falta de espaço suficiente, nos mercados informais tradicionais.

No meio urbano, as mulheres mais desfavorecidas encontram ocupação sobretudo no sector informal, um espaço tendencialmente violento, por se tratar de um espaço (físico e mental) fora da ordem normativa ou que adopta os seus próprios valores e normas, configurando uma marginalidade consentida. As mulheres encontram-se numa situação de fragilidade constante, em relação ao bandidismo e a acção dita fiscalizadora e ordenadora da administração do Estado, levada ao cabo tanto por fiscais, agentes do governo provincial, como por polícias, agentes do Ministério do Interior, que consiste na expulsão dos vendedores, correndo atrás dos mesmos, apreensão das mercadorias e aplicação de multas.

A acçao dos ficais e da polícia nacional deveria consistir no acto de expulsar vendedores das vias públicas, proibindo a venda nesses locais, podendo em alguns casos, apreender os bens e mercadorias dos vendedores, e devolvê-los apos o pagamento de uma multa. No relatório da Human Rights Watch (HRW, 2013) sobre violações de direitos humanos de vendedores ambulantes, são denunciados abusos como: maus-tratos físicos, extorsão, suborno, rusgas e detenções.

A acçao dos fiscais resulta de uma decisão governamental de acabar com os mercados informais na cidade de Luanda, anunciada em 2012[39].

Neste estudo, em um grupo focal de 11 mulheres, 10 tiveram experiências traumáticas com agentes da fiscalização. Para as mulheres fiscalizar é certo, mas a violência e a prática de ficarem com os bens é errada.

Segundo contam, os agentes da fiscalização operam à paisana e têm por prática ficar com os produtos das vendedoras que recolhem na rua. As mulheres dizem que a prática parece ter se transformado em negócio, e uma forma de alimentar á vida dos fiscais, que escolhem que tipo de mercadoria levar, preferindo artigos valiosos e de grande utilidade (como perfumes, relógios, calçados, roupa etc).

Além desta prática, mulheres vendedoras contam, que também já foram vítimas de agressões físicas. Uma das mulheres revelou que perdeu o bebé, por causa da “surra”[40], e que um dos seus filhos fica assustado quando vê homens desconhecidos virem na sua direção. Outra levou com porrete nas pernas e tinha, na altura da pesquisa, a perna inflamada e com muitas dores. Uma terceira a testemunhou que além de bater nas vendedoras, as crianças também tem sido vítimas dessa violência. Certa vez, a sua filha menor (ao colo) caiu enquanto corria, fugindo os fiscais.

Ilustração 11: Vendedora depois de ser perseguida e espancada com mangueiras

Foto: Iselin Åsedotter Strønen

Além da violência há ainda a corrupção. As mulheres denunciaram que muitas vezes para reaverem as suas mercadorias têm de pagar os fiscais. Dependendo da qualidade do negócio varia entre 2 – 8 mil kwanzas (ou mais, a julgar pela natureza do negócio das que ali se encontravam).

O grupo afirma que reclamar não adianta, porque os fiscais e a polícia trabalham juntos. Uma das mulheres conta que, certo dia foi reclamar junto do superior dos fiscais e este recusou-se a entregar a sua mercadoria, disse-lhe que era “criminosa e que era melhor ir-se embora ao invés de ir ao Tribunal, pois este, passaria-lhe uma multa, muito elevada”.

Assim, para as mulheres, a apreensão é apenas um pretexto para os fiscais apropriarem-se indevidamente de bens dos vendedores.

Conclusão

Os temas sobre a mulher e seus problemas não têm merecido uma atenção política adequada. A sua amplitude ultrapassa a agenda política actual que reduz a sua acção a duas questões: a violência doméstica e a promoção das mulheres na política e, não assegura outras dimensões, como seja a sua participação nos processos de tomada de decisão. E, para além da agenda política não englobar todos os temas relativos às mulheres, o investimento do Estado na promoção e apoio às mulheres é muito baixo (pouco dinheiro) e fraco (pouca qualidade).

Não é visível uma política de género na periferia. Aí, as relações entre homens e mulheres são fortemente influenciadas por um certo modelo cultural ou tradicional que estabelece normas que determinam comportamentos e atitudes desiguais, em relação a diferentes domínios. O trabalho doméstico continua a desempenhar um papel determinante na produção ocupando a maior parte do tempo das mulheres, de grande parte da sua energia e obrigando a que a maioria se desenrasque em harmonizar as suas responsabilidades no lar, com o seu trabalho produtivo, nomeadamente de vendedora.

Pela sua presença massiva no sector informal, percebe-se que o lugar da mulher da periferia continua a ser de uma grande marginalização social e económica; sem proteção e segurança, as debilidades se adensam pela fraca e baixa aquisição de recursos, que apenas, através de grandes exercícios e criatividade, possibilitam financiar, bem ou mal, o orçamento doméstico, quase inteiramente destinado às despesas com alimentação.

Para além de suportar este calvário diário, acresce-se o facto de ter de suportar ainda o peso da violência dos fiscais e da criminalidade na comunidade, figurando entre as principais vítimas de agressões morais, económicas, físicas e sexuais.

Na periferia faz também diferença, particularmente nas condições do agregado, a questão do estado civil das mulheres pois a participação económica de ambos é melhor que de um apenas. Para além das questões afectivas e emocionais, e embora a estabilidade da relação não se explique pela forma da união, a mulher que não formaliza a sua relação é mais desprotegida em termos de tutela dos seus direitos sucessórios, de segurança social e/ou familiares.

Também a poligamia que é uma prática que persiste faz com que a mulher continue a estar exposta a conflitos e formas de pressão afectiva, que adensam os conflitos conjugais, quer porque afecta negativamente a confiança e a afeição conjugal, como diminui as receitas para o orçamento doméstico que passa a ser repartido entre os diferentes agregados. Os riscos e as fragilidades da pobreza afectam mais negativamente a mulher na periferia. A voz da mulher continua a ser silenciada e mantida no espaço doméstico e, a falta de órgãos de apoio, nos bairros, aumenta esse silencio e o descaso g em relação a questões tão centrais e decisivas na proteção da dignidade humana.

Assim, concluímos que em Angola - embora sejam visíveis ligeiras mudanças nas relações homem/mulher, introduzidas sobretudo pela presença da mulher no mercado de trabalho - o sistema de género é marcado por uma cultura machista hegemónica (CEIC-UCAN 2017, p. 107), na medida em que prevalece e persiste o costume de que apenas a mulher deve encarregar-se das tarefas domésticas, das de cuidar dos filhos e do marido e da de preservar a moral familiar. No entanto, parece estar a haver uma mobilização social à volta das questões de género e a abrir perspectivas de futuro que podem enfrentar um novo sistema de género.

Referências

Bosslet, Juliana Cordeiro de Farias (2014). A cidade e a guerra: relação de poder e subversao em São Paulo de Assunçao de Luanda (1961 – 1975). Dissertação para a obtenção do grau de Mestre em História. Niteroi: Universidade Federal Fluminense, Departemento de História.

Bandeira, Lourdes Maria (2014). Violência de género: a construção de um campo teórico e de investigação. Brasília: Revista Sociedade e Estado, Vol 29, n.º 2, pp. 449 – 469.

Cunha, Barbara Madruga da (2014). Violência contra a mulher, direito e patriarcado: perspectivas de combate à violência de género. Curitiba: In Anais das XVI Jornadas de Iniciação Científica de Direito da UFPR, pp. 149-169.

Crespo, António Albenaz e Gurovitz, Elaine (2002). A pobreza como fenómeno multidimensional. RAE electron. São Paulo: RAE electron. Vol 1,  n.º 2, pp. 02-12.

CEIC (2017). A integração da mulher nos processos produtivos em Angola. Luanda: Universidade Católica de Angola, Centro de Estudos e Investigação Científica.

CEIC (2017). Relatório Económico 2016. Luanda: Universidade Católica de Angola, Centro de Estudos e Investigação Científica.

Guimarães, Maisa Campos e Pedroza, Regina Lúcia Sucupira (2015). Violência contra a mulher: problematizando definições teórias, filosóficas e jurídicas. Brasília: Revista de Psicologia e Sociedade, 2015, Vol. 2, n.º 27, pp 256 – 266.

HRW (2013). “Tire essas porcarias daqui” - Violência policial contra vendedores ambulantes em Angola. Luanda: Human Rights Watch

INE (2014). Dados definitivos do Recenseamento Geral da População e Habitação. Luanda: Instituto Nacional de Estatística.

Lopes, Carlos M (2014).  A economia informal em Angola: breve panorâmica. Luanda : Revista Angolana de Sociologia,  [Online], n.º 14, pp. 61-75.

Moreira, Claudete Oliveira (2005-2006). Geografia de Género. Coimbra: Cadernos de Geografia  n.º 24/25, FLUCC, pp. 141-144.

Mccall, Leslie (2010). Intersectional Approach. North Carolina:  University of Carolina Press, pp. 58-72.

Novo Jornal (2017). Pobreza extrema cresce em Angola: mais de 8 milhões de angolanos vivem com menos de 1,25 dólares por dia. Luanda: Novo Jornal: Edição Online.

OIT (2005) A organización Internacional del Trabajo e a Economia Informal. Lisboa: Organização Internacional do Trabalho, 1.º Ed.

OIT Organización Internacional del Trabajo. Brasília: Organização Internacional do Trabalho. DN

RdA (2013). Política Nacional Igualdade e Equidade de Género. Luanda: Governo de Angola/ Ministério da Família e Promoção da Mulher.

RdA (2013). Plano de Desenvolvimento de Luanda 2013 – 2017. Luanda: Governo de Angola

Santos, Orlando (2011). Mamãs quitandeiras, kínguilas e zungueiras: trajectórias femininas e quotidianas de comerciantes de rua em Luanda. Luanda: Revista Angolana de Sociologia [Online], n.º 8, pp. 105 – 120.  

Saffioti, Heleieth I.B (2001). Contribuições femenistas para os estudos da violência de género. São Paulo: Cadernos Pagu,  n.º 16, pp. 115 – 136.

Saffioti, Heleieth I.B. Violência contra a mulher e violência doméstica. Disponível em: we.riseup.net. N.D

Sousa, Luana Passos de. Guedes, Dyeggo Rocha (2016). A desigual divisao sexual do trabalho: um olhar sobre a última década. São Paulo: Estudos Avançados vol. 30, n.º 87, pp. 123 – 139.

Strønen, Iselin Åsedotter e Nangacovie, Margareth (2016). Violência contra a mulher no contexto da pobreza urbana em Angola. Bergen: Chr. Michelsen Institute, 2016, Brief vol. 15 n.º 16.

Tvedten, Inge e Lázaro, Gilson (2016). Pobreza urbana e desigualdade em Luanda. Bergen: Chr. Michelsen Institute, Brief vol. 15 n.º. 17.

 

Notes

[1] Esta pertence a subcategoria “Género e Direitos Humanos”.

[2] Não podemos deixar de sinalizar, mais uma vez, que há uma profunda escassez de dados secundários de qualidade sobre o género no país.

[3] Abordagem interseccional ou interseccionalidade é uma forma de abordagem e de análise, nos estudos de género, que procura observar e/ou compreender a relação entre várias variáveis, consideradas as mais relevantes, em função do contexto (classe, género, sexualidade, raça ou outra) para explicar a relação entre estas categorias e os sistemas de poder, bem como a sua influência nas diferentes mutações destes sistemas.

[4] Veja-se a questão da violência doméstica.

[5] Plano de Desenvolvimento Provincial 2013-2017, pp. 13-14.

[6] Não necessariamente uma nova realidade, já que as periferias existem desde o período colonial. Ver A Cidade e a Guerra (2014) de Juliana Bosslet. Entretanto, esta nossa referência serve apenas para justificar que do ponto de vista histórico não é uma realidade nova ou pós-colonial, mas que se adensa e se torna, assim como no regime colonial, a expressão material mais visível dos excluídos da política da cidade.

[7] Os dados apresentados foram todos recolhidos da entrevista colectiva ao Coordenador da Comissão de Moradores, Sr. Mateus Damião Amadeu, aos 16 de Fevereiro de 2016.

[8] Estes, acarretam água nos vizinhos e fazem, as conhecidas, puxadas (ligações não autorizadas pela empresa pública de eletricidade, a partir de postos públicos ou de vizinhos) para asegurar luz eléctrica em casa.

[9] Os dados sobre o bairro Paraíso foram recolhidos em entrevista ao Padre Mário Cherchi, Pároco de Nossa no Paraíso, ao 27 de Janeiro de 2016 e ao coordenador da Comissão de Moradores, Senhor Manuel Augusto, aos 23 de Fevereiro de 2016. Os dois entrevistados divergiram em relação ao número de habitantes enquanto o padre falava em 55 mil habitantes, o coordenador da Comissão de Moradores, referia 120 mil. O Censo de 2014 apenas refere que o município de Cacuaco é dos mais populosos de Luanda, com mais de 1 milhão de habitantes. Vide CENSO, 2014, p. 33.

[10] Onde por consumo paga-se entre 2 mil kwanzas (habitação) /mês – 6 mil kwanzas/ mês (estabelecimento de ensino), embora o fornecimento não seja regular.

[11] No ano de 2015, graças a um grupo de mulheres do bairro que se manifestou junto a Administração Comunal e Municipal, foi instalado o sistema de água potável. Temos a entrevista com a principal mobilizadora do movimento a Sra. Branca da Conceição (caso n.º 5), no II capítulo.

[12] Em 2017, o dólar tinha um valor entre 35 – 40 mil kwanzas a nota, no sector informal (como é conhecida a venda de notas na rua, através das conhecidas kinguilas/os ou doleiras/os) e de 16 mil kwanzas nos bancos comerciais, sector formal. Ou seja, por cada 100 dólares obtinha-se entre 35 a 45 mil kwanzas (na rua) e cerca de 16 mil Kwanzas nos Bancos Comerciais. Entretanto, vale referir que os bancos deixaram de vender e conceder divisas pela forte escassez, em parte também motivada por práticas ilícitas dentro dos próprios bancos, como era: a facilitação privilegiada, a troca sob pagamento de comissões, a cedência de notas para venda no mercado informal etc.

[13] Dados extraídos de uma entrevista a dois moradores do Catambor, com mais de 40 anos no bairro e em documentos fornecidos pela Administração da Maianga.

[14] Segundo dados fornecidos pela Administração da Maianga.

[15] Lito Galheta, representante da antiga comissão de moradores do bairro Catambor.

[16] Vide declarações do antigo Presidente da Comissão Administrativa de Luanda, José Tavares, in ANGOP, disponível em http://www.angop.ao/angola/pt_pt/noticias/sociedade/2015/4/21/Angola-CACL-melhorou-assistencia-servicos-saude-Jose-Tavares,5bbf534e-d627-478d-a0fe-ce35a35cb6a6.html, acessado aos 20/05/2015.

[17] Vide entrevista do antigo Administrador do Distrito Urbano da Maianga, in ANGONOTÍCIAS, disponível em: http://www.angonoticias.com/Artigos/item/30251/bairro-catambor-em-modernizacao, acessado aos 20/05/2015.

[18] É importante referir que enquanto decorria o trabalho de campo eram realizadas obras e instalação de condutas de água, em algumas partes do Bairro, no âmbito da cooperação chinesa.

[19] Disponível em: http://www.novojornal.co.ao/sociedade/interior/pobreza-extrema-cresce-em-angola-mais-de-8-milhoes-de-angolanos-vivem-com-menos-de-125-usd-por-dia-48088.html, acessado em: 10/5/2017.

[20] Não estão disponíveis dados provinciais desagregados por género, mas os dados nacionais indicam 5,5, para mulheres, e 1,3, para homens (INE, 2014, p. 40).

[21] Os dados nacionais apontam: 35,6, para a população feminina e 33,9 para a população masculina (INE, 2014, p. 42).

[22] Em termos nacionais, os dados são: 460,7, para as mulheres, e 533,7, para os homens (INE, 2014, p. 43).

[23] Refira-se que esta taxa pode ter decrescido se considerarmos o impacto da crise económica na diminuição de actividades produtivas, mais concretamente no encerramento de empresas e outras instituições, mandando para o desemprego centenas, senão milhares de angolanos.

[24] Luanda é considera a província com menores proporções de agregados que pratica a agricultura (INE, 2014, p. 75 ), o que é explicável pelas suas características geográficas e sociais.

[25] Funcionamentos são definidos como tudo aquilo que “uma pessoa pode considerar valioso ter ou fazer”. Este não é um conceito dos autores mas formulado por Amartya Sen, na obra “Desenvolvimento como liberdade” (1999), a partir da qual fazem um estudo teórico sobre as múltiplas dimensões da pobreza.

[26] Visto que as metas foram fixadas para 2017, que eram: aumentar até 50% o número de mulheres alfabetizadas; em 75% o número de mulheres que concluem os ensinos básico e secundário; em 50% as que frequentam e concluem os cursos profissionais e técnicos; em 30% a presença de mulheres nos sectores da investigação; reduzir em 50% as desistências escolares por gravidez precoce; estender a 80% os serviços de saúde especializados e planeamento familiar nos municípios; realizar até 50 palestras sobre saúde sexual e reprodutiva para homens; reduzir em 50% a feminização do HIV e outras.

[27]Na área da mulher: Estamos a velar pela situação da violência doméstica. Estamos a coordenar as acções cometidas por diversas entidades. Se há um conflito dentro de um lar, também podemos intervir! Trabalhamos com Tribunais, por exemplo. Para isto temos equipas de acção social, temos sociólogos para poder aconselhar”, Baptista Adão Correia, Director dos antigos combatentes, promoção da mulher e acção social, do município de Belas em entrevistas aos investigadores Aslak Orre, Eduardo Sassa e Cláudio Tomás. Apenas para ilustrar, uma vez que inclusive os Coordenadores das Comissões de Moradores ao se referirem à mulher, referiam-se de forma constante à violência doméstica. Apenas o coordenador do Paraíso referiu também a falta de registo civil das mulheres, como sendo um problema na sua comunidade.

[28] Falta de condições na esquadra para condução das investigações, distorção do papel dos organismos de investigação que procuram sempre que podem realizar apenas um trabalho de aconselhamento, assumindo um discurso de culpabilização da mulher; a falta das casas de abrigo; a falta de centros de assistência psicológica as vítimas e outras.

[29] A questão da violência (violência no lar, violência sexual, violência no trabalho e violência institucional) merece, mais abaixo, um tópico especifico. Entretanto, refira-se que a violência contra as mulheres no lar continua a ser um tema sensível. Poucas vezes discutido e assumido como um problema social, pelas próprias mulheres.

[30] É comum colocar-se manteiga, ovo, ou outro acompanhamento no pão.

[31] Para referir que é um arroz sem verduras, podendo, inclusive, não ser confeccionado com óleo ou sal.

[32] Saco de arroz de 25 ou 50 kilos; caixa de óleo (12 litros); caixa de massa (12 pacotes de 200 ou 500g); caixa de coxa de frango (24 coxas); caixa de peixe; saco de açúcar.

[33] Possivelmente, sem o devido reconhecimento.

[34] A maioria empregada em escolas privadas (comummente designados por colégios) do Bairro.

[35] Na verdade tem se disseminando de tal forma, que até pessoas com rendimentos elevados também socorrem-se da mesma para realizar despesas mais avultadas como comprar um carro.

[36]

[37] Porque é necessário reconhecer que apesar de muitos acreditarem na regra, também existem exemplos que demostram que já há homens que se envolvem no trabalho doméstico, e isso ajuda-nos a perceber que há já outra transformação social em curso.

[38] Disponível em:  http://novojornal.co.ao/sociedade/interior/angola-regista-cerca-de-170-casos-por-dia-de-violencia-domestica-contra-a-mulher-42666.html, acessado aos 27/06/2018.

[39] Vide Relatório da Human Rigths Watch “Tire essas porcarias daqui” - Violência policial contra vendedores ambulantes em Angola. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/report/2013/09/30/256474 acessado aos 03/09/18.

[40] Expressão comummente utilizada para referir-se a prática de agressão física.

See also: