Sempre do Topo para a Base: Revisões Constitucionais em Angola
1975 Constituição e Regime de Partido Único
1992 Revisões e Eleições Multipartidárias
2010 Revisões e Eleições Presidenciais Indirectas
How to cite this publication:
Inge Amundsen (2021). Sempre do Topo para a Base: Revisões Constitucionais em Angola. Bergen: Chr. Michelsen Institute (CMI Working Paper 2021:10)
English version: Always top-down: Constitutional reforms in Angola
Angola revisou, uma vez mais, a sua constituição, em 2021. Segundo declarações oficiais, estas revisões “fortalecem o Estado de Direito, a separação e interdependência dos órgãos de soberania”, mas este documento demonstra que o resultado foi o oposto. Num processo que foi, mais uma vez, do topo para a base com pouca ou nenhuma participação dos cidadãos e fortemente criticado pela oposição, o efeito foi um reforço da posição dominante do partido no poder e reforçou, ainda mais, os poderes da já omnipotente presidência.
Introdução
Pela terceira vez, desde a independência, em 1975, Angola revisou a sua constituição, em 2021. Uma vez mais, o propósito e o efeito deste exercício, aparentemente, foi para reforçar ainda mais a “presidência imperial” de Angola e, mais uma vez, o processo foi do topo para a base com pouca ou nenhuma consulta ou participação dos cidadãos.
A seguir, descreve-se a cronologia dos processos de elaboração e revisão da Constituição angolana, actualizada com informações da cobertura pela imprensa de eventos e debates recentes sobre as implicações das últimas revisões. Em contraste directo com as declarações oficiais, demonstraremos que as revisões cimentaram a posição dominante do partido no poder e reforçaram, ainda mais, os poderes da presidência.
Cronologia
Actualmente, Angola está na sua terceira república. A primeira durou desde a independência, em 1975, até aos eventos marcantes de 1991/92 que conduziram ao fim (temporário) da guerra civil, à abolição da República Popular de partido único e à introdução do sistema multipartidário. A segunda república durou até à elaboração de uma nova constituição, em 2010, que aboliu as eleições presidenciais directas e estabeleceu uma ‘presidência imperial’. Em 2017, o Presidente Eduardo dos Santos deixou o poder que detinha há 38 anos e o seu anterior Ministro da Defesa, João Lourenço, assumiu a presidência. Em 2021, a separação de poderes foi ainda mais enfraquecida porque a Assembleia Nacional já não podia responsabilizar politicamente o executivo.
1975 Constituição e Regime de Partido Único
Em Portugal, no dia 25 de Abril de 1974, deu-se a chamada Revolução dos Cravos, que pôs fim ao regime ditatorial e Portugal embarcou num período de transição para a democracia e o fim do colonialismo português. Em Janeiro de 1975, os acordos de Alvor transferiram o poder em Angola do império colonial para um governo de transição composto pelos três movimentos de libertação: o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA). Este governo de transição depressa se desmoronou, com cada uma das facções nacionalistas desconfiando das outras e pouco disposta a partilhar o poder, tentando tomar o controlo do país pela força. Em Julho de 1975, as forças do MPLA empurraram violentamente a FNLA para fora de Luanda e a UNITA retirou-se para o seu bastião do sul do país. Em Novembro, o líder do MPLA, Agostinho Neto, declarou a independência da República Popular de Angola, pois que o movimento de libertação marxista, MPLA, controlava Luanda, a capital.
Para solidificar o seu poder, o governo do MPLA impôs uma constituição baseada nos princípios marxistas-leninistas e fundou um estado de partido único. As outras partes retiraram-se para o interior rural do país e começaram uma guerra civil que viria a durar 27 anos. A FNLA desistiu da luta armada, mas a UNITA e o MPLA continuaram a lutar até 2002, com uma curta pausa em 1991/92, com aquela a controlar a região rural e o último a controlar as cidades.
A primeira constituição, a Lei Constitucional da República Popular de Angola, estabeleceu um estado monopartidário marxista-leninista , em 1975. O seu primeiro parágrafo instituía a República Popular de Angola como um estado soberano, independente e democrático. O segundo parágrafo , entretanto, garantia que “Toda a soberania reside no Povo Angolano”, estabelecendo o MPLA como “seu legítimo representante.” Por outras palavras, a primeira constituição estabelecia a ditadura de um partido único.
Durante o tempo do Partido único, a constituição foi revista diversas vezes, o que deu ao MPLA um firme domínio do poder e reafirmou os seus objectivos socialistas. O poder político foi centralizado, com o parlamento constituído apenas por representantes nomeados pelo MPLA , tornando-se na subserviente Assembleia do Povo. O Presidente da República era, igualmente, o presidente do MPLA e, na tradição comunista do partido da época, o MPLA colocava-se acima de todas as instituições do estado como o partido de ‘vanguarda’. A constituição não concedia qualquer autonomia à Assembleia do Povo e não havia Tribunal Supremo nem Tribunal Constitucional (o Tribunal de Recurso de Luanda funcionava como o mais alto tribunal do país ).
O que se seguiu foram 25 anos de guerra . Angola tornou-se num “cenário quente” da guerra fria, até ao colapso da União Soviética. Em 1990, o MPLA abandonou a sua anterior ideologia marxista e autodeclarou-se partido ‘social democrático’. Reduziram as restrições no mercado económico e, em Maio de 1991, o MPLA conseguiu um acordo de paz com a UNITA, nos Acordos de Bicesse, que também conduziu a uma transição para uma democracia multipartidária.
1992 Revisões e Eleições Multipartidárias
A segunda república foi resultado de um moroso processo de conversações de paz que veio a terminar com uma solução negociada. Este processo teve lugar no meio de uma onda de democratização que varreu a África subsaariana no final dos anos 80, parcialmente como consequência da dissolução da União Soviética.
Os Acordos de Bicesse e o processo de paz reflectiram a relativa força das partes beligerantes, MPLA e UNITA, e ambas concordaram com algumas novas regras básicas do jogo. Por exemplo, teria de haver desmobilização completa (o que nunca aconteceu, mas sim o contrário) e partilha de poder num Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN) com membros do MPLA e da UNITA.
A primeira ronda de revisões constitucionais foi feita em Maio de 1991, com as alterações necessárias a fim de dar abertura para eleições multipartidárias. Concedeu a todos os cidadãos liberdade de expressão, o direito de realizar reuniões e manifestações, de formar partidos políticos e de apresentar candidatos às eleições. Isto levou ao estabelecimento de muitas novas organizações da sociedade civil, jornais e estações de rádio independentes, e transformou a UNITA num partido político legal. Uma segunda revisão de Setembro de 1992 mudou o nome do país para República de Angola (em vez de República Popular de Angola).
Contudo, estas revisões constitucionais não foram feitas de qualquer forma inclusiva ou consultiva. As revisões foram aprovadas pela Assembleia do Povo, ainda de partido único (constituída apenas por representantes nomeados pelo MPLA), antes das eleições multipartidárias. Além disso, as revisões não separaram os poderes entre o executivo (o Presidente), o legislativo (a Assembleia Nacional) e o judicial (Supremo Tribunal).
O sistema foi chamado de “semipresidencial” porque deveria haver um primeiro-ministro, mas concedeu ao presidente autoridade unilateral sobre as nomeações para uma vasta gama de cargos-chave executivos, judiciais e outros cargos públicos, e deu poderes ao presidente para contornar a legislatura e legislar ou governar sem a participação do legislador, mesmo em situações de não emergência. Além disso, as revisões estabeleceram um sistema eleitoral de “o vencedor fica com tudo”.
As revisões constitucionais de 1991/92 estabeleceram um sistema presidencial forte (Amundsen et al. 2005: 4). O governo (Conselho de Ministros com ministros e vice-ministros) foram todos nomeados e podiam ser exonerados pelo presidente, mas o presidente não podia ser destituído pelo parlamento. Por outras palavras, o parlamento poderia ser dissolvido pelo presidente, mas não o contrário. Além disso, o presidente tinha o direito exclusivo de nomear e demitir o governo e uma longa lista de outros altos funcionários do Estado (como o governador do Banco Nacional de Angola, o procurador-geral, o chefe do estado maior general , chefes e adjuntos do pessoal dos diferentes ramos das forças armadas, embaixadores e governadores provinciais). Como este direito também incluía os juízes do Supremo Tribunal, o Supremo Tribunal ficou dependente do presidente e foram excluídos quaisquer poderes de contrapeso do Supremo Tribunal.
Como a Constituição de Angola datava da era comunista de partido único, com apenas as alterações mínimas necessárias para que Angola pudesse realizar eleições multipartidárias, com direitos e liberdades políticas fundamentais e os princípios básicos de uma economia de mercado a ela acrescentados, havia muitos resquícios do governo de partido único dentro da constituição.
É de notar, igualmente, que o objectivo das revisões constitucionais de 1991/92 era – de acordo com o partido no poder – “reflectir a realidade do país e assegurar maior estabilidade aos cidadãos” (Amundsen et al. 2005: 6). Isto deu logo o sinal de que o MPLA continuava a querer uma presidência forte, num processo que não incluía qualquer consulta alargada e uma constituição que reflectia, de facto, o domínio do partido no poder.
Assim, quando o líder da UNITA, Jonas Savimbi, perdeu a eleição presidencial, ele e a sua UNITA ficaram com muito pouco - e Savimbi e as suas forças da UNITA voltaram às matas e reiniciaram a guerra civil. O reinício da guerra civil na sequência das primeiras eleições de Angola, em 1992, bloqueou a trajectória do país rumo à consolidação de uma democracia, deixando-o num “estado ambíguo de transição” (Hodges 2004: 47).
2010 Revisões e Eleições Presidenciais Indirectas
Depois de mais anos de guerra civil, Jonas Savimbi foi morto pelo exército do MPLA e as forças guerrilheiras da UNITA foram desmobilizadas. A UNITA foi derrotada militarmente, não foi nem uma solução negociada nem um processo de reconciliação. O MPLA já não tinha mais rivais sérios no acesso ao poder e podia consolidar o seu domínio sem ter que fazer quaisquer concessões a alguém.
Nas eleições de 2008, as primeiras após a guerra e as segundas eleições multipartidárias na história do país, o MPLA ganhou 82 por cento dos votos e quatro quintos dos assentos no parlamento. Esta era uma maioria suficientemente grande para mudar a constituição mesmo que toda a oposição votasse contra. Assim, em 2010, quase vinte anos depois da ‘democratização’ de Angola e depois de 30 anos com o Presidente dos Santos no poder, Angola teve outra constituição e entrou na terceira república.
A Constituição da República de Angola de 2010 reflectia a posição única do poder do MPLA e do seu presidente. A constituição de 2010 estabelecia o que foi chamado de uma ‘presidência imperial’, um termo cunhado por Rui Verde (Verde 2020). Esta ‘presidência imperial’ foi codificada e reforçada, e a possibilidade de contrapor qualquer poder real ao domínio do MPLA foi efectivamente bloqueada. A constituição de 2010 também preparava o caminho para uma transição suave de saída do regime de Dos Santos, mas com total controlo do partido MPLA.
Em Janeiro de 2010, a Assembleia Nacional de Angola aprovou a nova constituição, na sua totalidade, por 186 a 0 votos. A votação foi bloqueada pela UNITA, alegando que o processo constitucional tinha sido deficiente e antidemocrático. A nova constituição tinha sido elaborada por uma comissão de 60 parlamentares, aconselhada por 19 peritos num “processo de consulta pública”. No entanto, a oposição e uma grande parte das organizações da sociedade civil reclamaram que o governo não aceitou nenhum dos seus muitos pedidos para a revisão da constituição e alegaram que as suas contribuições tinham sido ignoradas.
O Preâmbulo da Constituição de 2010 estabelecia a separação e equilíbrio de poderes dos órgãos de soberania e no Artigo 2.1 podia ler-se: “A República de Angola é um Estado Democrático de Direito que tem como fundamentos a soberania popular, o primado da Constituição e da lei, a separação de poderes e interdependência de funções, a unidade nacional, o pluralismo de expressão e de organização política e a democracia representativa e participativa”. Nos seus mais de 200 artigos, a constituição garante uma vasta gama de direitos, incluindo o respeito pela dignidade humana, a justiça social e a participação política.
No entanto, apesar destes bons princípios democráticos declarados no prelúdio, a carta adicional desta lei básica confirmou e reforçou os poderes do presidente angolano. O presidente detém, simultaneamente, o poder executivo como Chefe de Estado e é o Comandante-em-Chefe das forças armadas e do aparelho de inteligência. Pode, ainda, fazer as nomeações para cargos-chave como os juízes para o Tribunal Constitucional, para o Tribunal Supremo e para a chefia do Tribunal de Contas, que é o órgão responsável pela revisão das despesas públicas. Pode perdoar e comutar sentenças. E é o único que pode ratificar tratados internacionais.
Além disso, a nova constituição substituiu o primeiro-ministro por um vice presidente, tornando a presidência ainda mais directamente envolvida nos assuntos quotidianos do estado. A constituição também concedia ao presidente o poder de emitir “decretos legislativos presidenciais provisórios” sempre que existirem “razões de urgência e relevância, e tal medida se mostrar necessária à defesa do interesse público”, com força jurídica (Constituição de 2010 Art. 126). Por outras palavras, não é apenas a legislatura que pode fazer leis, mas também o presidente.
Ao mesmo tempo, foi também reforçado o controlo, pelo presidente, do partido no poder (Vines 2019: 93). O Presidente dos Santos decidiu não se candidatar à reeleição, abrindo assim caminho a um novo Chefe de Estado, o seu sucessor, escolhido a dedo, João Lourenço. No entanto, ele manteve o cargo de Presidente do MPLA.
Uma disposição muito criticada da constituição de 2010 foi o facto de ter abolido a eleição directa do presidente. No âmbito da constituição de 2010, a pessoa que encabeça a lista de candidatos do partido maioritário na assembleia torna-se automaticamente presidente e a segunda pessoa da lista, vice-presidente. Por outras palavras, o principal candidato da lista eleitoral do partido vencedor (ou coligação) será nomeado Presidente da República. Esta disposição quase única de Angola, permite ao maior partido o controlo total da presidência (permitindo ao MPLA manter o controlo, caso perca a maioria, dado que continua a ser o maior partido). Também reduz o controlo parlamentar da presidência: reforça o oposto, nomeadamente o controlo executivo da legislatura.
Assim, estava inserida na constituição de 2010 de Angola, uma contradição: garante os direitos fundamentais e a constitucionalidade, ao mesmo tempo que alarga ainda mais os poderes presidenciais. Como não há limitação do poder do executivo, as liberdades fundamentais estão em risco. Por conseguinte, a oposição e a sociedade civil, em Angola, têm apelado, repetidamente, a uma revisão constitucional para eliminar a eleição indirecta do presidente, a fim de incluir disposições para o estabelecimento de autoridades locais eleitas (descentralização) e para modernizar a constituição, de modo a estabelecer freios e contrapesos adequados que limitem o poder do presidente.
2021 Revisões e Não Responsabilização Política
Quando o Presidente João Lourenço tomou a iniciativa de rever alguns artigos da constituição de 2010, os apelos para freios e contrapesos adequados e limites ao poder presidencial não eram, provavelmente, o que ele tinha em mente. Em Fevereiro de 2021, surpreendentemente, o presidente apresentou um projecto de lei para alterar mais de 40 artigos da constituição, sem qualquer consulta pública prévia, levantando várias questões sobre os seus verdadeiros objectivos, uma vez que o presidente tinha rejeitado fortemente pedidos anteriores de revisão por parte da oposição e da sociedade civil (Ferreira 2021).
Segundo o Chefe de Gabinete do Presidente, os principais objectivos das revisões eram “melhorar as relações institucionais entre o Presidente da República e a Assembleia Nacional, clarificando os instrumentos de controlo político”, prever o direito de voto dos cidadãos angolanos no estrangeiro, tornar o Banco Nacional de Angola independente e “pôr termo ao princípio do gradualismo na institucionalização efectiva das autoridades locais e estabelecer uma data fixa para as eleições” (Constituição Net 2021). O Chefe de Gabinete também sublinhou que “a proposta não prevê o aumento do poder constitucional do Presidente da República, nem o alargamento do seu mandato” (Lusa/VerAngola 2021).
O primeiro objectivo mencionado é de particular interesse: “clarificar” os instrumentos de controlo político entre o presidente e o parlamento.
De acordo com o draft do texto (com explicações, dadas na Proposta de Lei de Revisão Constitucional 2021 (República de Angola 2021a)), há a sugestão de uma nova alínea do Artigo 162/3 que restringirá a função de responsabilização do parlamento em tempo oportuno. No texto lê-se que “A fiscalização da Assembleia Nacional sobre o Executivo incide sobre factos ocorridos no período correspondente ao mandato em curso”. Por outras palavras, o parlamento só pode agora supervisionar os actos do executivo no seu período de exercício (deixando o ex-presidente/presidência fora de alcance).
Além disso, um ponto novo é o Artigo 120/J sobre os poderes do presidente (como “Titular do Poder Executivo”). Este artigo concede ao presidente o poder de “Declarar a situação de calamidade pública” (como, por exemplo, na actual pandemia da Covid-19), embora só depois de “ouvida a Assembleia Nacional” Isto irá aumentar o direito do presidente a declarar o estado de emergência e confere-lhe o direito de emitir ordens executivas e decretos, num leque mais vasto de situações.
Não foram feitas quaisquer alterações nestas revisões sugeridas sobre a eleição do presidente (ainda indirecta) ou nos amplos poderes do presidente, tanto como titular do poder executivo, como comandante-em-chefe das forças armadas. O Presidente da República é o detentor de todos os poderes executivos (Titular do Poder Executivo), nomeia ministros do governo para o apoiar no exercício do poder executivo (e os ministros respondem apenas perante ele) e detém poderes legislativos consideráveis (o parlamento não é exclusivo na elaboração de leis). O presidente pode ainda sugerir novas leis à vontade, enquanto o parlamento precisa do apoio de um terço dos deputados para avançar com uma proposta de lei (um número que a oposição, em conjunto, não tem actualmente). O presidente pode, também, instruir o Procurador-Geral, e pode “verificar” a constitucionalidade das leis elaboradas pelo parlamento (Verde 2020).
Além disso, o presidente terá ainda o direito exclusivo de nomear juízes presidentes e adjuntos de todos os tribunais superiores do país (Constitucional, Supremo, de Contas e dos Supremos Tribunais Militares) bem como nomear e exonerar o vice-presidente, o procurador-geral, procuradores militares, governadores de província, membros da Comissão Eleitoral e um grande número de outros líderes de agências estatais e entidades para-estatais. A única alteração é que o presidente só nomeará o governador do Banco Central após a sua candidatura ter sido “ouvida” no parlamento.
Duas das alterações (Artigos 162/G e 162/H) parecem reforçar o parlamento. Primeiro, o parlamento, em comissões especiais, pode agora fazer interpelações e apelos aos ministros e governadores provinciais, desde que estes os solicitem, antecipadamente, ao presidente. Isto acontece depois do Tribunal Constitucional, em 2013, ter declarado inconstitucional a disposição do Regimento da Assembleia Nacional que atribuía ao parlamento o poder de supervisionar e controlar o executivo através de interpelações parlamentares em plenário.
Em segundo lugar, o parlamento pode, agora, criar comissões especiais de investigação/inquérito. No entanto, os poderes das comissões especiais de investigação/inquérito são muito limitados. Está, imediatamente, especificado, no Artigo 162/2 da constituição revista que “Os mecanismos de controlo e fiscalização previstos no número anterior não conferem à Assembleia Nacional competência para responsabilizar politicamente o Executivo, nem para colocar em causa a sua continuidade em funções” (República de Angola 2021: 31). Esta é a então chamada ‘cláusula de não responsabilização política’. Por exemplo, se uma comissão parlamentar de investigação encontra práticas ilegais, o parlamento não pode pedir a exoneração do ministro responsável , apenas pode ‘informar’ o presidente das suas conclusões.
Foram também levantadas preocupações acerca de algumas outras disposições. Por exemplo, nas palavras de Paula Cristina Roque, a oposição angolana que inicialmente acolheu as revisões constitucionais, cedo se apercebeu de que iriam bloquear alguns líderes da oposição de se candidatarem às eleições de 2022. “Dois artigos, em particular, visavam invalidar a candidatura dos líderes mais fortes da oposição, o novo Presidente da UNITA, Adalberto da Costa Júnior, e Abel Chivukuvuku do PRA-JÁ, com base no facto dos candidatos presidenciais que tinham renunciado ao seu assento parlamentar no passado terem sido desqualificados (Chivukuvuku), tal como os que tinham tido dupla nacionalidade na década anterior à sua candidatura (da Costa Júnior)” (Roque 2021: 199-200).
Além disso, as medidas que permitem confiscações e nacionalizações de bens suscitaram preocupações, e a limitação adicional da soberania do poder judicial suscitou grandes receios (Ferreira 2021). Numa declaração pública, a Associação dos Juízes de Angola (AJA) declarou que as alterações propostas relativamente ao sistema judicial eram “um vergonhoso recuo do Estado democrático e de direito e da Constituição, por visarem uma verdadeira desestruturação do sistema judicial” (DW 2021a). Em Agosto de 2021, o Presidente do Tribunal Constitucional de Angola, Manuel Aragão, demitiu-se e analistas e políticos não tinham dúvidas de que ele havia se demitido devido a interferências políticas na justiça e às emendas sugeridas à constituição. Ele tinha avisado, anteriormente, que era o “suicídio do Estado democrático e de Direito”, considerando mesmo que a revisão constitucional, ora aprovada, põe em causa a “separação de poderes”(DW 2021b).
Foi também levantada a preocupação sobre o calendário e o processo. Mais uma vez, o MPLA tem, actualmente, a maioria de dois terços necessária para aprovar qualquer revisão constitucional por si só. Este poderá não ser o caso após as eleições gerais marcadas para 2022, quando existe uma possibilidade real de o MPLA perder a sua maioria qualificada e, assim, perder a sua capacidade de aprovar a constituição por si só. Após esta “janela de oportunidade”, serão necessários pelo menos 5 anos para alterar novamente a constituição, uma vez que as emendas constitucionais exigirão, a partir de agora, a aprovação por dois parlamentos.
Além disso, de acordo com a metodologia aprovada para o processo constitucional, deveria haver um extenso processo de consulta pública, uma vez concluído o trabalho de redacção. Um extenso processo de consulta foi delineado em dois documentos (Aprovação dos Princípios para Elaboração da Futura Constituição, Metodologia de Trabalho (República de Angola 2021b), Programa de Apresentação e Debate Público Sobre os Projectos de Constituição da República de Angola (República de Angola 2021c), em que o projecto seria aberto à “discussão pública e consulta” com contribuições de “diferentes classes profissionais e individualidades idóneas, autoridades tradicionais, organizações não-governamentais, entidades religiosas, comunidades, estudantes, etc.” (República de Angola 2021c: 1). Assim, em Abril de 2021, o parlamento realizou reuniões consultivas com peritos jurídicos e representantes das igrejas e convidou dez ONGs (organizações não governamentais) para apresentarem contribuições para a revisão constitucional.
Entretanto, duas dessas organizações da sociedade civil, Handeka e Mosaiko, declinaram o convite declarando que a auscultação pretendia “usar” a sociedade civil para dar credibilidade a um processo que “nasceu enviesado” (DW 2021c). A falta de um processo de consulta antes da apresentação das revisões sugeridas ao parlamento foi também fortemente criticada pelo principal partido da oposição, a UNITA. O líder do grupo parlamentar da UNITA, Liberty Chiaka, disse que a proposta de revisão constitucional não foi precedida por uma ampla consulta da sociedade e das organizações políticas mais representativas. O grupo parlamentar da UNITA e a CASA-CE abstiveram-se, portanto, de votar tanto o projecto de lei que propõe as emendas (Lusa/VerAngola 2021) como a aprovação final das revisões (DW 2021c).
No entanto, na terça-feira, 22 de Junho de 2021, o parlamento dominado pelo MPLA aprovou as emendas à constituição. A aprovação do projecto de lei levou à emenda, por grosso, dos mais de 40 artigos, tal como sugerido pelo Presidente. O projecto de revisão constitucional foi aprovado com 152 votos a favor (MPLA e alguns deputados da oposição), nenhum voto contra e 56 abstenções (UNITA e CASA-CE) (DW 2021d).
Em Agosto de 2021, o Tribunal Constitucional de Angola validou a Lei de Revisão Constitucional de 2021, solicitando apenas uma revisão: o tribunal não subscreveu a estipulação de que os Tribunais Superiores teriam de enviar relatórios anuais das suas actividades ao Presidente da República e à Assembleia Nacional. Isto foi considerado uma violação do princípio da separação de poderes (Jornal de Angola 2021). A Assembleia Nacional anulou, então, esta estipulação, e a 13 de Agosto de 2021, o Presidente João Lourenço promulgou a Lei de Revisão Constitucional.
Conclusões
O esquema, acima, demonstra três características principais do processo de elaboração da constituição angolana e das emendas constitucionais:
Em primeiro lugar, a constituição e as emendas foram sempre um processo do topo para a base. As constituições e emendas tiveram origem na Presidência, como peças de vestuário prontas a vestir, sem qualquer processo consultivo significativo. Até às revisões de 2010, o processo estava unicamente nas mãos do MPLA, o partido no poder. A partir de 2010, tanto a oposição no parlamento como as principais organizações da sociedade civil caracterizaram o processo constitucional como ilegítimo, como “nascido enviesado”, e a oposição votou contra ou absteve-se.
Em segundo lugar, o resultado do processo nunca foi um acordo negociado, nunca foi o resultado de um consenso. Como o filósofo Ferdinand Lassalle afirmou em 1862, a constituição de um país é uma expressão da “relação de forças efectivamente existente no país”, e que “estas relações de força propriamente ditas são colocadas no papel, são dadas por escrito” (Lasalle 1862: 26). Uma constituição é, frequentemente, o produto de um de dois processos políticos. É o resultado de um conflito intenso onde as principais partes concorrentes e beligerantes concordam em estabelecer algumas regras básicas do jogo, em dividir e restringir o exercício do poder, e em salvaguardar os direitos da minoria. Alternativamente, é a manifestação escrita do domínio de um partido. A constituição de Angola tem sido quase exclusivamente deste último tipo.
Em terceiro lugar, o resultado tem sido o estabelecimento e um maior reforço da “presidência imperial”. Nas palavras de Rui Verde, a Constituição de 2010 “serviu para consagrar uma presidência imperial e hiperbólica” (Verde 2021 :27). Embora o Presidente Lourenço tenha afirmado que as emendas de 2021 se destinavam a “reforçar os princípios democráticos do Estado de direito e da separação de poderes” (como se afirma no documento de fundo, República de Angola 2021a : 24), os receios e críticas das revisões, acima delineadas, não permitem outra conclusão que não seja a oposta.
Traduzido do inglês por Ana Bela Primo.